23 Sinais
Onde e quando nasceu a escrita?
Nunca teremos resposta.
A maioria dos historiadores admite que foi em Uruk, na Mesopotâmia, há uns 5000 anos.
Mas o começo da escrita é inseparável de uma definição sobre ela.
Os primeiros sinais escritos em tijolos ovais de argila amassada com as mãos, seca ao sol, são numéricos e informam sobre a organização social dos sumérios. Eram pictogramas que designavam objectos ou pessoas.
Povos muito diferentes que se desconheciam iniciaram a escrita pictografica em épocas distanciadas. Alguns, como os antigos mexicanos, que usavam outros materiais, não tiveram a oportunidade de a transformar numa escrita ideográfica.
A grande revolução foi a passagem à escrita fonética e a criação, pelos fenícios, do primeiro alfabeto.
A existência de idiomas muito diferentes não impediu que povos de culturas antagónicas adoptassem o mesmo alfabeto.
A força da tradição está na origem de absurdos aparentes. A China, berço de uma civilização criativa e brilhante, mantém ainda uma escrita ideográfica; o Vietnam utiliza o alfabeto latino; o Irão trocou há 1400 anos a escrita aramaica pelos caracteres árabes aos quais o persa se adapta mal; a Rússia permanece fiel ao alfabeto cirílico, de raiz grega.
O homem já pisou o solo da Lua mas, transcorridos milénios sobre o aparecimento dos primeiros pictogramas, um quinto da humanidade contemporânea não rompeu a fronteira do conhecimento da escrita: quase 1200 milhões de pessoas adultas vivem ainda, segundo a UNESCO, mergulhadas nas trevas do analfabetismo.
O acaso permitiu-me ser testemunha, em Março de 1989, de um acontecimento e que guardo lembrança muito forte: a comemoração do fim do analfabetismo no primeiro município de língua portuguesa onde ele praticamente havia acabado (restavam 30 iletrados muito idosos) . Isso não ocorreu em Portugal nem no Brasil. Foi no cinema dos Espargos, o único povoado da pequena e árida ilha do Sal, em Cabo Verde, onde a própria agua que se bebe, dessalinizada, tem de ser retirada do mar.
Acompanhei aquilo a convite do ministro da Educação da República, um amigo que fora embaixador em Lisboa. E recordo pequenos incidentes dessa estranha jornada.
A solenidade esteve ausente no encerramento de uma campanha que mobilizara toda a população. Quando uma mulher subiu ao palco para falar em nome dos recém-alfabetizados, interroguei-me. Que iria dizer ?
Não lhe esqueci o nome. Rosa Timas tinha então 53 anos e preferiu ler o que, com letra hesitante, escrevera num papel . Mas a insegurança desapareceu com a ovação recebida quando tomou o microfone nas mãos.
Ela percebeu que a assistência se transformara num grande colectivo. E chorou de alegria porque todos sentiam ali o mesmo.
O ministro, Corsino Tolentino, transportou-me pela imaginação às bancadas de um teatro grego quando da vitória contra o obscurantismo naquela ilha perdida na imensidão atlântica fez lição. Em jeito de contador de estórias trouxe para a sala o dialogo que havia mantido com uma colega da Rosa. Antes da primeira lição, ela sentia medo ao contemplar nas estantes as lombadas dos livros. Escapava-lhe o segredo do mistério mágico da escrita. A quantidade imensa de sinais ininteligíveis fazia subir nela uma dor grande, nascida da consciência do não saber. As letras assustavam-na. Nunca, pensava, poderia armazenar na cabeça o conhecimento a que a escrita abria portas. Mas, de repente, à terceira ou quarta lição, a felicidade inundou-a. Compreendeu. Afinal, o segredo da sabedoria passava pelo domínio de 23 letras e 10 algarismos. Com o alfabeto, mais nove números e o signo do zero, podia agarrar o mundo com as mãos e abrir as janelas para o saber.
O povo, reunido no pequeno cinema, assimilou instantaneamente a mensagem transmitida.
Transcorridos quinze anos, repasso com frequência na memória o filme daquela jornada.
Nunca teremos resposta.
A maioria dos historiadores admite que foi em Uruk, na Mesopotâmia, há uns 5000 anos.
Mas o começo da escrita é inseparável de uma definição sobre ela.
Os primeiros sinais escritos em tijolos ovais de argila amassada com as mãos, seca ao sol, são numéricos e informam sobre a organização social dos sumérios. Eram pictogramas que designavam objectos ou pessoas.
Povos muito diferentes que se desconheciam iniciaram a escrita pictografica em épocas distanciadas. Alguns, como os antigos mexicanos, que usavam outros materiais, não tiveram a oportunidade de a transformar numa escrita ideográfica.
A grande revolução foi a passagem à escrita fonética e a criação, pelos fenícios, do primeiro alfabeto.
A existência de idiomas muito diferentes não impediu que povos de culturas antagónicas adoptassem o mesmo alfabeto.
A força da tradição está na origem de absurdos aparentes. A China, berço de uma civilização criativa e brilhante, mantém ainda uma escrita ideográfica; o Vietnam utiliza o alfabeto latino; o Irão trocou há 1400 anos a escrita aramaica pelos caracteres árabes aos quais o persa se adapta mal; a Rússia permanece fiel ao alfabeto cirílico, de raiz grega.
O homem já pisou o solo da Lua mas, transcorridos milénios sobre o aparecimento dos primeiros pictogramas, um quinto da humanidade contemporânea não rompeu a fronteira do conhecimento da escrita: quase 1200 milhões de pessoas adultas vivem ainda, segundo a UNESCO, mergulhadas nas trevas do analfabetismo.
O acaso permitiu-me ser testemunha, em Março de 1989, de um acontecimento e que guardo lembrança muito forte: a comemoração do fim do analfabetismo no primeiro município de língua portuguesa onde ele praticamente havia acabado (restavam 30 iletrados muito idosos) . Isso não ocorreu em Portugal nem no Brasil. Foi no cinema dos Espargos, o único povoado da pequena e árida ilha do Sal, em Cabo Verde, onde a própria agua que se bebe, dessalinizada, tem de ser retirada do mar.
Acompanhei aquilo a convite do ministro da Educação da República, um amigo que fora embaixador em Lisboa. E recordo pequenos incidentes dessa estranha jornada.
A solenidade esteve ausente no encerramento de uma campanha que mobilizara toda a população. Quando uma mulher subiu ao palco para falar em nome dos recém-alfabetizados, interroguei-me. Que iria dizer ?
Não lhe esqueci o nome. Rosa Timas tinha então 53 anos e preferiu ler o que, com letra hesitante, escrevera num papel . Mas a insegurança desapareceu com a ovação recebida quando tomou o microfone nas mãos.
Ela percebeu que a assistência se transformara num grande colectivo. E chorou de alegria porque todos sentiam ali o mesmo.
O ministro, Corsino Tolentino, transportou-me pela imaginação às bancadas de um teatro grego quando da vitória contra o obscurantismo naquela ilha perdida na imensidão atlântica fez lição. Em jeito de contador de estórias trouxe para a sala o dialogo que havia mantido com uma colega da Rosa. Antes da primeira lição, ela sentia medo ao contemplar nas estantes as lombadas dos livros. Escapava-lhe o segredo do mistério mágico da escrita. A quantidade imensa de sinais ininteligíveis fazia subir nela uma dor grande, nascida da consciência do não saber. As letras assustavam-na. Nunca, pensava, poderia armazenar na cabeça o conhecimento a que a escrita abria portas. Mas, de repente, à terceira ou quarta lição, a felicidade inundou-a. Compreendeu. Afinal, o segredo da sabedoria passava pelo domínio de 23 letras e 10 algarismos. Com o alfabeto, mais nove números e o signo do zero, podia agarrar o mundo com as mãos e abrir as janelas para o saber.
O povo, reunido no pequeno cinema, assimilou instantaneamente a mensagem transmitida.
Transcorridos quinze anos, repasso com frequência na memória o filme daquela jornada.