Um retrato involuntário
Ainda a campanha eleitoral ia nos seus primeiros dias, embora de facto acrescentada pelos dias de pré-campanha, e já o telespectador eventualmente atento podia ter coleccionado uma mão-cheia de factos ou situações que nela haviam surgido e que eram divertidos, ou bizarros, ou involuntariamente esclarecedores. Um certo número deles teve como protagonistas não tanto candidatos em debate ou tarefa de propaganda como essa espécie de intervenientes colaterais que são os comentadores. São de não muito diversos sectores políticos ou ideológicos, embora em grau variável: uns são conotáveis com a área PSD, outros com a área PS, outros ainda com a área CD/PP. Conotáveis com a área PCP/CDU é que não tenho visto nenhum na televisão; há-de ser porque são gente pouco inclinada a comentar ou porque se recusam a aparecer na TV por inultrapassável timidez, pois não posso admitir que as estações de televisão discriminem negativamente os comunistas ou os que com os comunistas se pareçam. Nem o senhor Presidente da República o consentiria; bem se viu como ele ficou preocupado quando do caso Marcelo, se bem que então não se tratasse de um comunista. Mas, retomando o fio da curta meada que vinha desenrolando, referir-me-ei a um dos tais momentos involuntariamente esclarecedores a que atrás aludi. Foi no programa «Outras Conversas», para onde Maria João Avilez convidara dois interlocutores que a seu ver decerto asseguravam a pluralidade de opiniões que está na moda: um era do PS e o outro do PSD. Falara Guilherme de Oliveira Martins, do PS, e dissera naturalmente o que bem lhe parecia acerca do País, do futuro imediato, do que será preciso fazer. Seguiu-se Rui Machete, do PSD e também da Fundação Luso-Americana. E, sem dúvida para ir à raiz da questão que então era abordada, para de uma forma sintética exprimir desde logo o mais importante, Rui Machete começou por, digamos, pôr o dedo na ferida: disse ele que o Partido Socialista «ainda não se libertou» de alguns princípios ideológicos. Confesso que, embora sem ficar surpreendido, logo ali admirei o sentido do essencial e a capacidade de síntese do dr. Machete. Alguns minutos depois, pude verificar que o dr. Oliveira Martins não se atrevia a negar a acusação, ou por ela ser certeira ou por, quem sabe?, ter vergonha de fazê-lo.
A força centripta
Ficou ali muito claro, pois, que isso de ter ideologia é estar preso a um velho traste que já não se usa e de que é preciso que um partido, e presumivelmente um qualquer sujeito, se desembarace com urgência. Supondo-se que a palavra há-de ter um qualquer conteúdo, um significado, e sabendo-se embora que é usada com acepções muito diversas, parece inegável que sempre corresponde a um conjunto de entendimentos acerca da vida e do mundo, de princípios e de valores. Porque é assim, vale a pena notar que este lamento acerca da remanescência de valores ideológicos no seio do PS veio da boca de destacado militante do PSD, e notar também que há nisso grande coerência. De facto, olhando-se com alguma atenção o Partido Social Democrata, logo se torna evidente que se trata na verdade de um partido sem ideologia, isto é, sem entendimentos globais acerca da vida e do mundo, sem comuns princípios e valores éticos que o enformem, sem uma orientação cultural/intelectual que lhe dê consistência. O seu parceiro de coligação (repare-se que não escrevi «cúmplice», o que decerto comprova a minha condescendência democrática) ainda pode afixar o seu apego aos valores cristãos numa espécie de cartaz que será o seu B.I. político, mas o PSD não tem condições para tanto. Perguntar-se-á, então, o que estimula o sentido de coesão que faz com que se trate de um partido político e não apenas de um punhadão de sujeitos de número e geometria variáveis; muito numerosos quando o partido está na área do poder, menos numerosos quando o poder está longe, visitados por tentações de fracção neste segundo caso, sempre caracterizados por ambições e apetites que funcionam como força centripta. Mas se há um só aspecto que caracterize o PSD é a ausência de valores, substituídos por una espécie de institucionalização do direito ao saque da sociedade pelo indivíduo isolado em todo o esplendor do seu egoísmo. São aqueles valores que podem e devem ser estrutura de uma ideologia e que, existindo, condicionam a acção das gentes. Que o dr. Machete diagnostique alguma sua sobrevivência, mesmo remota, no PS, reprovando-a, é de facto um involuntário elogio que o PS merecerá ou não. Mas é, sobretudo, um também involuntário retrato do PSD esboçado por um homem que foi seu dirigente e que, ao dizer o que disse, produz um luminoso esclarecimento que vale a pena guardar, não esquecer. Para boa compreensão do que vai acontecendo.
A força centripta
Ficou ali muito claro, pois, que isso de ter ideologia é estar preso a um velho traste que já não se usa e de que é preciso que um partido, e presumivelmente um qualquer sujeito, se desembarace com urgência. Supondo-se que a palavra há-de ter um qualquer conteúdo, um significado, e sabendo-se embora que é usada com acepções muito diversas, parece inegável que sempre corresponde a um conjunto de entendimentos acerca da vida e do mundo, de princípios e de valores. Porque é assim, vale a pena notar que este lamento acerca da remanescência de valores ideológicos no seio do PS veio da boca de destacado militante do PSD, e notar também que há nisso grande coerência. De facto, olhando-se com alguma atenção o Partido Social Democrata, logo se torna evidente que se trata na verdade de um partido sem ideologia, isto é, sem entendimentos globais acerca da vida e do mundo, sem comuns princípios e valores éticos que o enformem, sem uma orientação cultural/intelectual que lhe dê consistência. O seu parceiro de coligação (repare-se que não escrevi «cúmplice», o que decerto comprova a minha condescendência democrática) ainda pode afixar o seu apego aos valores cristãos numa espécie de cartaz que será o seu B.I. político, mas o PSD não tem condições para tanto. Perguntar-se-á, então, o que estimula o sentido de coesão que faz com que se trate de um partido político e não apenas de um punhadão de sujeitos de número e geometria variáveis; muito numerosos quando o partido está na área do poder, menos numerosos quando o poder está longe, visitados por tentações de fracção neste segundo caso, sempre caracterizados por ambições e apetites que funcionam como força centripta. Mas se há um só aspecto que caracterize o PSD é a ausência de valores, substituídos por una espécie de institucionalização do direito ao saque da sociedade pelo indivíduo isolado em todo o esplendor do seu egoísmo. São aqueles valores que podem e devem ser estrutura de uma ideologia e que, existindo, condicionam a acção das gentes. Que o dr. Machete diagnostique alguma sua sobrevivência, mesmo remota, no PS, reprovando-a, é de facto um involuntário elogio que o PS merecerá ou não. Mas é, sobretudo, um também involuntário retrato do PSD esboçado por um homem que foi seu dirigente e que, ao dizer o que disse, produz um luminoso esclarecimento que vale a pena guardar, não esquecer. Para boa compreensão do que vai acontecendo.