Os velhos e os outros

Correia da Fonseca
Os velhos voltaram ao ecrã do meu televisor. Costumo vê-los ali, as televisões gostam de mostrá-los sobretudo nos bancos dos jardins em busca de convívio e de sol ou, por vezes, a servirem-se de jogos de cartas para que desse modo não sintam tanto como passa por eles o tempo remanescente que ainda é seu. Também as televisões, em brevíssimas reportagens que serem ser alegres e transmitir optimismo, vão por vezes vê-los dançar em bailaricos de sociedades recreativas e gravam imagens desses momentos para no-los mostrarem. É claro que os velhos fazem muito mais que isso: há os que continuam a trabalhar muito para lá da idade da reforma, os que decidem estudar e desse modo aprender coisas que sempre quiseram saber sem que para isso tivessem oportunidade, os que participam na gestão de associações, os que militam no seu partido e nele trabalham enquanto os mais novos estão nos seus empregos. Tenho, porém, como certo que nos bancos dos jardins e nos bailes é que as reportagens televisivas mais gostam de encontrá-los, pouco se importando com a probabilidade de darem dos velhos, desse modo, uma imagem diminuída que eles, os velhos, não merecem.
Como ia dizendo, os velhos voltaram ao ecrã do meu televisor. Foi há poucos dias, numa reportagem que a SIC incluiu no seu Jornal da Noite do passado sábado. Desta vez, porém, os velhos, aqueles velhos, estavam em hospitais, internados. Por estarem doentes? Sim, no tocante a alguns deles, não quanto a outros. O que todos aqueles velhos estavam, isso sim, era abandonados: não tinham casa onde se recolhessem, não tinham familiares ou amigos que deles pudessem cuidar, não tinham nenhum lugar onde pudessem esperar a morte. Um ou outro teria sido abandonado em via pública ou à porta do hospital como lixo que é depositado na rua até que os homens da limpeza urbana o recolha; noutros casos terá sido o próprio hospital a consentir num internamento que a doença já não justificaria mas um elementar sentido de humanidade impõe. Quanto a estes casos, com razão ou sem ela fiquei persuadido de que não se trataria de um hospital S.A. pelos menos no serviço que acedeu àquele acolhimento, mas essa é uma outra questão.

Os recados, e depois

Não sei ao certo quantos velhos, ou como velhos considerados (pelo menos um deles teria pouco mais de cinquenta anos, mas digamos que estaria em situação factual de velhice), nos foram mostrados pela reportagem, mas não terão chegado a meia dúzia. Aliás, bem se sabe que os hospitais não estão vocacionados para funcionarem também como lares onde os velhos abandonados esperem o fim das suas histórias individuais quase sempre tristes. Mas ficou claro, até porque a reportagem teve o adequado cuidado de no-lo lembrar, que aqueles casos eram apenas uma diminuta amostra da situação de milhares de outros velhos que estão de facto abandonados por esse país fora sem sequer uma enfermaria hospitalar a que se acolham ou, dizendo-o de outro modo e perdoe-se-me a amarga ironia, sem uma doença que justifique o acolhimento. Porque, como de resto todos os dias é repetido em tom de queixa, este é um país de velhos. E, contudo, salvo porventura algumas raríssimas excepções que conciliam qualidade com acessibilidade, se é que tais excepções existem, nada será feito, disposto, organizado, para que estes muitos milhares de cidadãos não tenham o provável destino final de uma morte no abandono, nas penúrias múltiplas, no abandono. E, recordo-o, são muitos milhares, ainda que não fosse necessário serem tantos para que elementares deveres de cidadania obrigassem a que neles se pensasse e deles se cuidasse.
É perante esta situação, a par naturalmente de algumas outras que por hoje aqui não cabem, que me sinto estranhamente mal quando ouço na TV, repetidamente, figuras de topo da sociedade portuguesa advertirem o país, isto é, o povo que o habita, de que contenção é precisa, de que moderação salarial é urgente (e eu logo penso em quantos salários têm de servir também para amparar velhos na sua recta final), de que andamos a gastar mais do que as posses nacionais permitem. Tais figuras, ouço-as e vejo-as na televisão, deixam o seu recado e partem. E então eu imagino-as a entrarem depois nos seus carros topo-de-gama, rumo aos seus admiráveis gabinetes se não às suas vivendas, a menos que tudo se passe em vésperas de fim-de-semana, caso em que o destino pode ser um dos iates de luxo ou meio-luxo que ultimamente se têm multiplicado nas docas de recreio nacionais. E há, entretanto, a contenção das despesas públicas com a solidariedade, a gestão «económica» das administrações privadas nos hospitais S.A., os cortes e atrasos nos subsídios. E qualquer coisa de ácido sobe por mim acima e fica à beira de estoirar, sabe-se lá como.


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