Um homem feliz em luta
Ainda hoje, aos 90 anos, Sérgio Vilarigues aquilo que mais ama é a vida. O fascismo privou-o cedo da liberdade, infligiu-lhe torturas, obrigou-o a estar longe da família e dos amigos, apenas porque amava a sua gente. Por ela lutou, para que tivesse liberdade, democracia e bem estar. Apesar da vida de sacrifício e luta que teve - mas de que não se queixa -, é um homem feliz. E garante que nada abala as convicções políticas que perfilha desde os 16 anos, altura em que aderiu ao Partido Comunista Português.
«O Congresso ultrapassou todas as minhas perspectivas. Foi uma grande vitória do nosso Partido.»
O tipo de vida que tiveste deixou-te mágoas?
Normalmente, nesta vida há sempre mágoas, alegrias e tristezas, mas mágoas propriamente ditas... A perda de camaradas causa-nos mágoas, é certo, às vezes, as deserções...
Os afastamentos que ultimamente se têm verificado no Partido, entristecem-te?
Estes? Claro que causam sempre, mas não é uma mágoa por aí além. É que, creio, sou realista e... a luta é dura. Era na clandestinidade e é hoje, e se tu reparares bem, vês que há problemas de classe em alguns ou quase todos desses militantes, que foram bons durante uns tempos, ou nós julgávamos que eram inteiramente sãos...
Mas tu pensas que é só uma questão de origem de classe?
Não. Existem naturalmente outras razões, nomeadamente carreirismo, arrivismo, viver bem - lá está classe! -, enfim...
O Partido não terá algumas culpas?
Não, o Partido não tem culpas, o Partido comete erros. Olha, eu, pessoalmente, tenho pena de não ter cometido mais erros, porque seria uma prova de que tinha tentado fazer mais coisas. Fala-se muito em coragem. Coragem física é óptimo mas a coragem política é muito mais difícil. Na clandestinidade, por exemplo, quando se tinha encontros de mês a mês com a direcção do Partido e estava-se, por exemplo, no Algarve, com um movimento de massas a crescer - começa com a reivindicação de aumentos de salários, depois já há ambiente para manifestações ou para greves -, tu estás ali sozinho e tens que decidir. Bem, mas tens que ter a consciência de que podes, e poderás, de qualquer maneira, correr o perigo de dezenas de prisões e talvez mortes. Por outro lado, se estás à espera de quinze dias para teres um encontro, as condições perdem-se em horas. Assim, decides.
Abdicaste de sonhos para seguir essa vida de luta?
Sonhos? Não sei o que isso é. Olha, muitas vezes fala-se em solidão. Tenho estado anos e anos isolado, a viver sozinho, estive incomunicável, estive castigado e nunca me senti só: lá fora pulsava o coração da classe operária e do Partido. Os meus camaradas acompanharam-me sempre nas situações de isolamento. E aquilo que sou devo-o ao Partido, o Partido não me deve nada.
Mas sofreste, a tua vida familiar foi amputada...
Oh! Caramba, não, que não que sofri! Não houve foi possibilidades de harmonizar tudo. Por exemplo, eu tive um filho, e não foi porque não gostasse de ter mais, por mim gostava era de ter tido meia dúzia, mas este quando tinha três anos e meio começou a ser perigoso como tudo, era muito espertinho... Bem, fui obrigado a afastar-me dele e enviá-lo para a família.
Quando alguém se sacrifica, abdica de ter aquilo que se considera uma «vida normal», em termos de juventude, família, lazeres, significa que essa pessoa não tem sentimentos?
Não. Pelo contrário. Sacrificar isso tudo, por uma causa nobre, para acabar com o sofrimento de toda esta gente que vive no nosso País, não falo da burguesia, naturalmente, que essa é para acabar como classe - atenção, como classe -, para mim é ter sentimentos.
E como é que se sobrevive em situações tão difíceis como as que tu e outros camaradas o fizeram?
Olha, vou-te contar uma história. A minha primeira companheira, a Aida Paula, qualquer barata ou ratinho pequenino faziam-na dar pulos que a faziam chegar lá acima ao tecto. Foi presa, antes da reorganização do Partido, numa tipografia clandestina. E enviaram-na incomunicável para uma esquadra de uma polícia terrível, a Polícia dos Terramotos, ali em Campolide, princípio da Maria Pia. A determinada altura apareceu um ratinho na cela. E ela começou a dar-lhe bocadinhos de pão e o ratinho começou a aparecer a hora certa, pedindo a sua bucha. Só faltou foi fazer-lhe festinhas. Como é que se sobrevive? É assim. Nós lutamos por uma causa, se nos encontramos numa situação tramada, temos de sair dela. E então, em vez de cair em pânico, há que pôr a cabeça a pensar. Dou-te outro exemplo, as ligações nas prisões, de uma caserna para a outra. Nós, em Angra, chegámos a usar o arco e a flecha.
E, por histórias que já me contaste, conseguiam rir, mesmo de algumas situações dramáticas, para sobreviver...
Quase trágicas. Essa das ligações foi uma delas. Porque aquilo eram casernas velhas, o tecto era de madeira, abríamos o tecto, fazíamos a serra das facas com uma lima e quando tudo estava bem arranjadinho passávamos a comunicação para o telhado. Mas quando já não tínhamos outra forma de comunicar, houve quem se lembrasse do arco e da flecha. E do fio, que era o mais difícil, porque a flecha tinha que ir parar ao mar. Mandávamos a seta, que passava pelo sítio onde queríamos chegar, e, do outro lado, com um gancho, puxavam o fio, recolhiam a comunicação e largavam-no, porque a flecha ficava no mar a boiar e o fio ia-se afastando. Mas um dia a flecha ficou espetada no telhado e os camaradas tiveram de lá ir para tirá-la, só que lá embaixo já estava um soldado a meter a bala na câmara. Felizmente passou um sargento e levantou a espingarda. Demoraram dois dias para encontrar o buraco! Chegámos, assim, a passear em quatro casernas. É que, a princípio, quem fazia as comunicações eram os carcereiros, de uma caserna para a outra, através de um piaçaba e crinolina. Arranjávamos um tubo e metíamos lá as comunicações. E eles levavam-nas, só que não sabiam.
Em Setembro ou Outubro de 74, porque eu fiquei em semi-clandestinidade, após o 25 de Abril, um jornalista soviético perguntou-me como é que nós fazíamos as ligações intraprisionais, e de lá para cá e de cá para lá. Sabes o que eu lhe disse? Quando tomarmos o poder venha cá e aí talvez lhe possa dizer.
Nunca desesperaste, nunca sentiste as tuas convicções abaladas?
Pelo contrário, cada vez as sinto mais sólidas.
O que sentiste quando soubeste do 25 de Abril?
Olha, como podes calcular, se calhar como tu te sentiste: viva a liberdade! Mas por enquanto a liberdade burguesa. Nunca esqueci que a melhor democracia burguesa não deixa de ser a ditadura da burguesia sobre o proletariado. Já viste alguma carga policial sobre os banqueiros, sobre os grande empresários? Mas viste os banqueiros e os empresários chamarem a polícia contra os trabalhadores das suas empresas!...
A Revolução a sério
Hoje os comunistas são apresentados como gente estranha, duros, fechados, cinzentos, sem vida própria, agarrados ao passado, recusando-se a ver o presente. Sabemos que assim não é, mas como se combate uma imagem sistematicamente repetida e que acaba por ser interiorizada pelas outras pessoas?
A trabalhar cada vez melhor, a organizar cada vez melhor. A fortalecer o movimento de massas, principalmente o Partido, e a organização na classe operária, de forma a criar condições o mais rapidamente possível para fazer a revolução a sério.
Não poderemos aparecer como gente ameaçadora?
Isto não é ameaçador, isto é a lei da vida e não há outra solução. Quando a burguesia diz mal de nós, eu não fico insatisfeito, quando começa a dizer bem dos comunistas, aí é que eu me preocupo. Olha, que não digam bem de mim, que sou bom rapaz, que sou compreensivo, que sou tolerante... Eu não sou tolerante para o imperialismo, para o capitalismo!
O 25 de Abril foi talvez o único momento em que se fez justiça ao contributo que os comunistas deram para a conquista da liberdade e da democracia. Achas que as pessoas têm a memória curta ou não a transmitem?
Até nós às vezes temos a memória curta. Porque esquecemos muitas coisas e às vezes estamos a fazer comparações, como a de que a luta era mais difícil na clandestinidade. Eu digo que ainda não cheguei a uma conclusão. Cada coisa em sua situação concreta, naturalmente, mas não sei qual é mais difícil, se foi na clandestinidade se é agora. Porque esta situação cria hoje ainda muitas ilusões. É como a questão do eleitoralismo, por exemplo. Não sou muito adepto dessa história. Admitindo, por hipótese, que numas eleições o Partido Comunista era o partido mais votado, alguém se convence que o Presidente da República e quejandos chamavam o secretário-geral do PCP para formar governo? Eram capazes era de começa a organizar um golpe de Estado uns dias depois. Aliás, temos exemplos na História. Temos o exemplo de França e da Checoslováquia, após a guerra.
Ou do Chile...
E mesmo o Chile, mas é diferente, porque no Chile não era o Partido Comunista, era o Partido Socialista e o Partido Comunista, era uma democracia burguesa. Mas a verdade é que o capitalismo - seja o capitalismo inteligente ou outro qualquer - não é solução nos dias de hoje, e a prova está à vista. Só não está à vista para o capitalismo.
Compromissos de classe não dá, agora, acordos políticos, dá. Eu não tenho relutância nenhuma, admitindo que o diabo existia, de fazer acordos com o diabo, desde que isto trouxesse benefícios à classe operária, aos trabalhadores. E nunca nenhuma organização progressista (já não digo revolucionária) em Portugal lutou tanto no concreto pela unidade das forças progressistas, no tempo da ditadura fascista e posteriormente, como o Partido Comunista Português. Agora, deixar de ser Partido Comunista para nos aliarmos? Então dizemos, «meus caros senhores, sim, senhor, mãos dadas, mas se querem arrastar-nos para o pântano podre do oportunismo, por favor largai-nos das mãos e se precisarem de ajuda, nós ajudamos, mas vão vocês sozinhos para o pântano». Eu tenho a impressão de que se estuda muito pouco Lénine, Marx, Engels. Naturalmente que o Manifesto Comunista continua a ser actual. O fantasma do comunismo continua a percorrer o mundo. A apavorar. Porque o capitalismo continua a levantar esse fantasma. E tem razão.
Confiança no futuro
Como foi possível, depois do 25 de Abril, chegar-se à situação política actual, com todos os retrocessos que se verificaram em termos de democracia, de direitos dos trabalhadores e até de liberdade?
Porque, entre outras razões, houve traições absolutas e conspirações, incluindo de alguns capitães de Abril. E quanto aos socialistas, nós lembramo-nos que foi o próprio chefe do Partido Socialista na altura que «meteu o socialismo na gaveta».
Não sentes abalar a tua confiança no futuro com a situação que hoje vivemos?
A minha confiança no futuro continua inabalável, independentemente de a poder viver ou não, talvez não a possa viver. Mas lá que o socialismo e o comunismo triunfarão, triunfam. Porque nunca houve comunismo em parte nenhuma do mundo, ao contrário do que dizem. Nem nunca ninguém disse que havia regime comunista em Cuba, ou na União Soviética ou na Checoslováquia. Sistema socialista, sim, mas do sistema socialista ao sistema comunista vai uma enormíssima distância. Sabes, o Bento Gonçalves numa nota de contestação a uma nota de culpa que lhe enviou o tribunal terminava assim: «No entanto, a terra gira».
Agora, claro, quando não se tem confiança no futuro... porque nunca ninguém disse que a vida era uma sucessão de vitórias. A revolução processa-se com muitas vitórias e muitíssimas derrotas e avançar é mais fácil que recuar. Organizadamente, é claro.
Avançar com a classe operária? Mas diz-se que já não há classe operária...
A classe operária não desapareceu nada, a classe operária, como toda a vida aconteceu, sofreu transformações, ganhou qualidades. Eu pergunto: os computadores não são máquinas? As máquinas de escrever não são máquinas? Hoje quase toda a gente trabalha com máquinas. Antigamente, os engenheiros apareciam nas fábricas com luvas cor de canário, hoje aparecem já com as mãos cheias de óleo. Cursos brilhantes no Instituto Superior Técnico mas não percebiam nada de prática. Hoje percebem, e portanto podia-se até dizer que são operários. Aliás, já há muito tempo se levantava a questão de saber se não se estava a chamar empregado a quem já era operário. Que há muito mais assalariados, isso há, a maior parte dos engenheiros são assalariados, a maior parte dos professores são mesmo assalariados, etc.. Antes eram uns senhores doutores apenas.
O Congresso, uma grande vitória
Como vês o Congresso que o Partido acaba de realizar?
Ultrapassou todas as minhas perspectivas. Foi uma grande vitória do nosso Partido, independentemente de discordâncias, porque essa história de que na clandestinidade se dizia «amen» ao que o Álvaro dizia... Então não se dizia?! Nem ele queria. Mas voltando às discordâncias, neste momento, lembro-me, por exemplo, de pelo menos duas vezes ter estado em desacordo com decisões tomadas e, por azar, ter que ser eu uma vez a redigir uma resolução, outra a assumir a decisão. E é de facto lixado quando um tipo não está de acordo ter que ir defender, mas se o colectivo está de acordo... Ou era: porque estou em desacordo, faço o que quero? Isso é o que sucede a certos «renovadores». É necessário habituarmo-nos a que quando uma decisão é tomada no colectivo ou por maioria passa a ser de todo o organismo. E todo o organismo passa a ser responsável. Se não, não se está a realizar as tarefas de acordo com a linha traçada.
Voltando á pergunta, foi um Congresso muito bom, com toda a gente muito dinâmica. Bem, o voto secreto deu-me vontade de rir, mas afinal na prova real viu-se...
Depois de te ouvir, pergunto: 90 anos de vida é muito ou é pouco?
Para mim é pouco.
Para o que tens que fazer?...
Não, não é para o que tenho que fazer. É que, sabes o que mais amo na vida? É a vida! Apesar dos achaques que tenho, gosto de viver que me farto.
Consideras-te, pois, feliz?
Fui sempre feliz, inteiramente feliz. Bem, para ser inteiramente feliz tínhamos de viver noutro sistema, mas fui sempre feliz. Enfim, aquela relatividade..., agora não passo fome, mesmo quando tinha fome era feliz, por lutar.
Sérgio, o que dirias tu, com 90 anos e a tua experiência, a um jovem que entre hoje para o Partido?
Procurava prepará-lo para a realidade, ajudá-lo a encarar a vida como ela é, pois é necessário sermos também realistas. Digo-te, uma das tarefas mais difíceis de um partido revolucionário como é o nosso, é o problema dos quadros, o mais vital para o Partido. É que, às vezes, se há elementos que são mais rebeldes ou mais complicados, tudo é logo defeito e fecha-se os olha às coisas boas que eles têm. Ou seja, em vez de se incidir na valorização dos lados positivos, tudo passa a ser negativo. Isso é matar quadros. E podem convencer-se desta coisa: é que não há nenhum quadro do Partido a sério, que chegue a dirigente, se não esfolar os joelhos na luta prática. Um quadro do Partido para mim é como uma criança: gatinha, quando consegue pôr-se em pé fica todo contente. A mãe chama-o e ele cai, às vezes aleija-se, até que por fim se levanta. Sucedeu-me muitas vezes.
Biografia
Nasceu em Routar, Torredeita, Viseu, no dia 23 de Dezembro de 1914. Começou a trabalhar aos 12 anos, como marçano de freguesia, profissão que, aos 14 anos, passou a exercer em Lisboa. Aos 16 anos inicia-se na profissão de salsicheiro, ligando-se à Associação dos Trabalhadores das Carnes Verdes e quase imediatamente à Federação das Juventude Comunistas Portuguesa.
Foi preso pouco depois, em 1934, quando distribuía propaganda para a libertação de um jovem comunista condenado a 20 anos de cadeia, indo na situação de incomunicabilidade para a Esquadra de S. Domingos de Benfica. Daí passou para os calabouços do Governo Civil de Lisboa, depois para o Aljube e, a seguir, para Peniche. A 8 de Junho de 1935, é enviado para Angra do Heroísmo, para a Fortaleza de S. João Baptista. Finalmente, com a pena a que foi condenado já cumprida, foi enviado para o Tarrafal, de onde saiu em 1940, altura em que foi «amnistiado», ainda que sob «liberdade condicional».
Cá fora, apresentou-se uma vez à PVDE, comunicando que ia ausentar-se para tratar-se na sua terra, entrando então na clandestinidade, tinham começado a ser dados os primeiros passos na reorganização do Partido.
Orgulha-se de não ter voltado a ser preso, pois, como diz, «não gostei da primeira prisão».
Ao longo dos 34 anos seguintes, sempre na clandestinidade, percorreu o País de Norte a Sul, com a responsabilidade de diversas organizações, a primeira das quais o Algarve.
A partir de 1945, já como membro do Comité Central e da Comissão Política, teve a responsabilidade de todas as organizações ao Sul do Tejo, posteriormente por toda a zona de Pombal, Beiras, Porto Minho e Trás-os-Montes e, já como membro do Secretariado, por Lisboa, Ribatejo, Região do Oeste. Durante todo este tempo, desempenhou, ainda, muitas tarefas, fossem no estrangeiro – correu quase todo o mundo –, como responsável pelo Avante! ou dirigindo a Secção Internacional.
Mais tarde, por questões de defesa, é enviado para o estrangeiro, onde o 25 de Abril o apanhou, mas sempre ligado ao País, onde entrava e de onde saía com frequência.
Após o 25 de Abril continuou a pertencer ao Secretariado e à Comissão Política, funções que abandona em 1988, a seu pedido, e ao Comité Central, que deixa em 1996, também a seu pedido.