A investigação fundamental
Em contraponto às pressões dos lobbies empresariais e patronais, traduzidas no acentuado dirigismo da Ciência e da Tecnologia Europeia para a investigação aplicada e orientada para determinados objectivos industriais, nos dois últimos anos diversas outras iniciativas têm vindo a chamar a atenção para a importância urgente da investigação fundamental.
A Fundação Europeia da Ciência (ESF), um grupo de 45 Prémios Nobel Europeus e a associação dos presidentes dos Conselhos Nacionais de Investigação (EuroHORCs), entre outros, tomaram posição a favor da maior presença da investigação fundamental no Espaço Europeu de Investigação. Em Outubro de 2002, a presidência dinamarquesa da União realizou uma conferência sobre o tema «Conselho Europeu de Investigação». E em Dezembro de 2003, o Grupo de Peritos do Conselho Europeu de Investigação (ERCEG) propôs a constituição de um «fundo europeu para a investigação fundamental» financiado pelo Programa Quadro (para o efeito reforçado) funcionando por intermédio de um «Conselho Europeu de Investigação», a ser criado. Essas várias tomadas de posição traduzem insatisfações da comunidade científica quanto à (in)disponibilidade de recursos e às orientações políticas prevalecentes, procurando influir em tempo útil sobre as novas «perspectivas financeiras para a União Europeia» e a concepção do VII Programa Quadro (2006-2010).
Financiamento escasso na Europa
Na União Europeia, a maior parte da investigação fundamental é executada a nível nacional, com realce para o âmbito universitário, com financiamentos de base e concorrencional, de origem sobretudo pública. Mas organismos públicos de investigação e laboratórios de Estado desempenham também papel importante em alguns países (CNRS em França, CSIC em Espanha, CNR em Itália, Max Plank Gesellschaft na Alemanha, etc.), recebendo para o efeito financiamento plurianual temático e em certos casos concorrencional também. O financiamento nacional é canalizado através de agências públicas ou gerido por entidades científicas (Research Councils no Reino Unido, NWO nos Países Baixos, FNRS na Bélgica, Deutsche Forschungsgemeinschaft na Alemanha, etc.). A investigação fundamental é também executada a nível comunitário, como seja em redes e projectos coordenados pela Fundação Europeia da Ciência (ESF), bem como no quadro de algumas organizações intergovernamentais ou comunitárias (CERN, ESO, ESA, EMBO, EMBL, etc.). Algumas poucas acções recentemente introduzidas no Programa Quadro (acções Marie Curie e NEST) também concorrem, mas muito limitadamente, para o mesmo fim.
Mas na Europa o financiamento privado da investigação é escasso, e ainda mais escasso para fins de investigação fundamental; poucas empresas realizam investigação intramuros e, quando o fazem, focalizam-na em investigação aplicada e desenvolvimento tecnológico; pelo contrário, as empresas pressionam a aplicação prioritária dos fundos públicos para investigação aplicada, inclusivamente para ser executada nas próprias empresas.
Por comparação, nos EUA a investigação fundamental é sobretudo executada e encontra-se concentrada em 150 research universities, financiada por poderosas agências públicas como a NSF (National Science Foundation) e a NIH (National Instituts of Health); financiamento privado para a investigação fundamental é também atribuído por fundações filantrópicas e doações particulares. Como regra, nos EUA a afectação é directamente feita às equipas de investigação, o que gera grande competição mas grande precariedade também. Importantes corporações realizam autonomamente investigação de natureza fundamental intramuros (Bell Laboratories, IBM, etc.).
A disparidade de políticas científicas entre os dois lados do Atlântico encontra-se claramente manifesta na disparidade de números de prémios Nobel atribuídos a investigadores trabalhando num ou noutro lado, sendo que desde a década de 40, se verifica uma divergência persistente e progressiva.
É aparente a vontade teórica de a Comissão Europeia imprimir uma política de aproximação formal ao «modelo americano». Será uma orientação difícil e perigosa, na medida em que visa destruir para reorganizar e elevar o grau de concentração do sistema Europeu de I&D, quanto a recursos e a objectivos, aspirando a incertos sucessos futuros. Orientações que se repercutem profundamente na reestruturação dos presentes sistemas de ensino superior Europeus e das instituições nacionais de I&D. Sem que a oportunidade e estabilidade de trabalho e carreira de investigadores sejam salvaguardadas e a origem dos necessários fundos adicionais esteja de todo assegurada.
Enunciado sem convicção
A Comissão Europeia finalmente pronunciou-se, em Janeiro de 2004, sobre a investigação fundamental na comunicação «A Europa e a Investigação Fundamental», fazendo eco às aspirações da comunidade científica, traçando o quadro comparativo entre a União e os EUA, mas extraindo conclusões muito prudentes.
Logo após a referida comunicação, realizou-se em Dublin, em Fevereiro de 2004, a conferência «A Procura Europeia de Excelência em Investigação Fundamental», sob os auspícios da presidência irlandesa da União e a presença de ministros e altos funcionários de 27 estados, bem como de representantes do patronato, agências nacionais de financiamento e académicos. As conclusões dessa conferência repetem enfaticamente (o termo «excelência» é repetido sete vezes) o que a CE já antes enunciara na sua comunicação, designadamente a coordenação e concentração de políticas e recursos a nível Europeu, a formação de recursos humanos qualificados para a investigação e para a economia, e a afectação explícita de fundos à investigação fundamental no próximo Programa Quadro. A conferência mais propôs uma iniciativa Europeia que, merecendo a confiança da comunidade científica, crie um dispositivo que envolva a comunidade científica e as esferas empresarial e universitária, na definição das suas estratégias e na sua administração, para a afectação de fundos sob forma de subsídios individuais em base competitiva. Acaba por afirmar que a investigação fundamental deverá ser um forte pilar do Espaço Europeu da Investigação e este suportar a recuperação da liderança científica da Europa.
Mas pouco depois, nas conclusões do Conselho Europeu de Março de 2004 pode ler-se apenas: «O Conselho Europeu vê mérito no incremento do apoio à investigação fundamental da mais elevada qualidade e a oportunidade de financiamento específico será examinada. Aguarda com interesse uma proposta da CE que poderá incluir a possibilidade de estabelecer um Conselho de Investigação». É um enunciado displicente e sem convicção.
Finalmente, na comunicação de Junho de 2004, intitulada «Ciência e Tecnologia, a chave para o futuro da Europa», mais categórica, a União, através da Comissão Europeia, não consagra nem o prometido European Researh Council nem o desejado reforço da investigação fundamental, antes um mero «esquema» de apoio. Pelo contrário, reafirma a consabida prioridade dos interesses imediatos e utilitaristas da agenda dos grandes sectores económicos.
Um conflito de ideias que traduz o conflito social
A conclusão será que, passados mais de dois anos de mobilização da comunidade científica, desde os níveis de unidade de investigação, de associação sindical ou profissional, a estruturas representativas ou especializadas a nível da própria União Europeia, a prioridade da agenda económica e da investigação dirigida para a indústria prevaleceram inteiramente, quase sem ganhos para a agenda social e a investigação fundamental. A Comissão Europeia limitou-se à mera intenção de estabelecer ainda este ano um «esquema» de financiamento da investigação fundamental; o «documento de trabalho intercalar» produzido a 29 de Setembro passado pela CE em colaboração com o EuroHORCs, para além de repetir os mesmos considerandos e equacionar alguns aspectos particulares do novo mecanismo, confina-se a avançar com os conceitos de um «Conselho de Governo» (para superintender o novo «esquema») constituído por representantes de alto nível da comunidade científica Europeia (não de países), de uma vasta «bolsa» de especialistas para efeitos de «avaliação por pares», e de uma estrutura que cumpra os fins do novo mecanismo de financiamento (agência da União, fundação ou outra).
A realidade é que a agenda económica das corporações transnacionais é que comanda a marcha da Investigação Científica e Tecnológica na União Europeia. A concentração monopolista do capital e das actividades de produção progride. Paralelamente, avança a concentração da I&D num número reduzido de grandes instituições de investigação e de grandes universidades, ou de apertadas redes ou projectos de grande dimensão, ditos «excelentes». As patentes ou títulos de propriedade intelectual surgem como instrumentos também de apropriação e de investimento, tornaram-se em activos de novas oportunidades de negócio, também eles objecto de concentração monopolista.
Entretanto, os resultados da investigação fundamental e a formação de trabalhadores científicos altamente qualificados, não sendo propriedade privada desses mesmos interesses económicos, são um precioso mas mero substrato público de que gratuitamente se alimentam. Mas para os cidadãos Europeus, a investigação científica e a qualificação avançada, isto é, a criação de conhecimento e a sua fruição, são bens públicos de que não prescindem e que lhes são explicitamente garantidos como os direitos universais, pelas suas constituições nacionais.
A «constituição Europeia», proximamente objecto de ratificação na União, pretende subverter esses valores constitucionais, conferindo ao acesso à criação e à transmissão de conhecimento uma importância subalterna, ao diminuir o seu valor social como bem público para realçar o seu valor instrumental para o crescimento económico. Cabe aos trabalhadores científicos o dever cívico de a escrutinar e criticar, também do ponto de vista da Educação e da Ciência, para sobre este projecto Europeu formularem opinião própria e para com esta contribuírem para que todos os demais sobre ele formulem mais fundamentado juízo.
Financiamento escasso na Europa
Na União Europeia, a maior parte da investigação fundamental é executada a nível nacional, com realce para o âmbito universitário, com financiamentos de base e concorrencional, de origem sobretudo pública. Mas organismos públicos de investigação e laboratórios de Estado desempenham também papel importante em alguns países (CNRS em França, CSIC em Espanha, CNR em Itália, Max Plank Gesellschaft na Alemanha, etc.), recebendo para o efeito financiamento plurianual temático e em certos casos concorrencional também. O financiamento nacional é canalizado através de agências públicas ou gerido por entidades científicas (Research Councils no Reino Unido, NWO nos Países Baixos, FNRS na Bélgica, Deutsche Forschungsgemeinschaft na Alemanha, etc.). A investigação fundamental é também executada a nível comunitário, como seja em redes e projectos coordenados pela Fundação Europeia da Ciência (ESF), bem como no quadro de algumas organizações intergovernamentais ou comunitárias (CERN, ESO, ESA, EMBO, EMBL, etc.). Algumas poucas acções recentemente introduzidas no Programa Quadro (acções Marie Curie e NEST) também concorrem, mas muito limitadamente, para o mesmo fim.
Mas na Europa o financiamento privado da investigação é escasso, e ainda mais escasso para fins de investigação fundamental; poucas empresas realizam investigação intramuros e, quando o fazem, focalizam-na em investigação aplicada e desenvolvimento tecnológico; pelo contrário, as empresas pressionam a aplicação prioritária dos fundos públicos para investigação aplicada, inclusivamente para ser executada nas próprias empresas.
Por comparação, nos EUA a investigação fundamental é sobretudo executada e encontra-se concentrada em 150 research universities, financiada por poderosas agências públicas como a NSF (National Science Foundation) e a NIH (National Instituts of Health); financiamento privado para a investigação fundamental é também atribuído por fundações filantrópicas e doações particulares. Como regra, nos EUA a afectação é directamente feita às equipas de investigação, o que gera grande competição mas grande precariedade também. Importantes corporações realizam autonomamente investigação de natureza fundamental intramuros (Bell Laboratories, IBM, etc.).
A disparidade de políticas científicas entre os dois lados do Atlântico encontra-se claramente manifesta na disparidade de números de prémios Nobel atribuídos a investigadores trabalhando num ou noutro lado, sendo que desde a década de 40, se verifica uma divergência persistente e progressiva.
É aparente a vontade teórica de a Comissão Europeia imprimir uma política de aproximação formal ao «modelo americano». Será uma orientação difícil e perigosa, na medida em que visa destruir para reorganizar e elevar o grau de concentração do sistema Europeu de I&D, quanto a recursos e a objectivos, aspirando a incertos sucessos futuros. Orientações que se repercutem profundamente na reestruturação dos presentes sistemas de ensino superior Europeus e das instituições nacionais de I&D. Sem que a oportunidade e estabilidade de trabalho e carreira de investigadores sejam salvaguardadas e a origem dos necessários fundos adicionais esteja de todo assegurada.
Enunciado sem convicção
A Comissão Europeia finalmente pronunciou-se, em Janeiro de 2004, sobre a investigação fundamental na comunicação «A Europa e a Investigação Fundamental», fazendo eco às aspirações da comunidade científica, traçando o quadro comparativo entre a União e os EUA, mas extraindo conclusões muito prudentes.
Logo após a referida comunicação, realizou-se em Dublin, em Fevereiro de 2004, a conferência «A Procura Europeia de Excelência em Investigação Fundamental», sob os auspícios da presidência irlandesa da União e a presença de ministros e altos funcionários de 27 estados, bem como de representantes do patronato, agências nacionais de financiamento e académicos. As conclusões dessa conferência repetem enfaticamente (o termo «excelência» é repetido sete vezes) o que a CE já antes enunciara na sua comunicação, designadamente a coordenação e concentração de políticas e recursos a nível Europeu, a formação de recursos humanos qualificados para a investigação e para a economia, e a afectação explícita de fundos à investigação fundamental no próximo Programa Quadro. A conferência mais propôs uma iniciativa Europeia que, merecendo a confiança da comunidade científica, crie um dispositivo que envolva a comunidade científica e as esferas empresarial e universitária, na definição das suas estratégias e na sua administração, para a afectação de fundos sob forma de subsídios individuais em base competitiva. Acaba por afirmar que a investigação fundamental deverá ser um forte pilar do Espaço Europeu da Investigação e este suportar a recuperação da liderança científica da Europa.
Mas pouco depois, nas conclusões do Conselho Europeu de Março de 2004 pode ler-se apenas: «O Conselho Europeu vê mérito no incremento do apoio à investigação fundamental da mais elevada qualidade e a oportunidade de financiamento específico será examinada. Aguarda com interesse uma proposta da CE que poderá incluir a possibilidade de estabelecer um Conselho de Investigação». É um enunciado displicente e sem convicção.
Finalmente, na comunicação de Junho de 2004, intitulada «Ciência e Tecnologia, a chave para o futuro da Europa», mais categórica, a União, através da Comissão Europeia, não consagra nem o prometido European Researh Council nem o desejado reforço da investigação fundamental, antes um mero «esquema» de apoio. Pelo contrário, reafirma a consabida prioridade dos interesses imediatos e utilitaristas da agenda dos grandes sectores económicos.
Um conflito de ideias que traduz o conflito social
A conclusão será que, passados mais de dois anos de mobilização da comunidade científica, desde os níveis de unidade de investigação, de associação sindical ou profissional, a estruturas representativas ou especializadas a nível da própria União Europeia, a prioridade da agenda económica e da investigação dirigida para a indústria prevaleceram inteiramente, quase sem ganhos para a agenda social e a investigação fundamental. A Comissão Europeia limitou-se à mera intenção de estabelecer ainda este ano um «esquema» de financiamento da investigação fundamental; o «documento de trabalho intercalar» produzido a 29 de Setembro passado pela CE em colaboração com o EuroHORCs, para além de repetir os mesmos considerandos e equacionar alguns aspectos particulares do novo mecanismo, confina-se a avançar com os conceitos de um «Conselho de Governo» (para superintender o novo «esquema») constituído por representantes de alto nível da comunidade científica Europeia (não de países), de uma vasta «bolsa» de especialistas para efeitos de «avaliação por pares», e de uma estrutura que cumpra os fins do novo mecanismo de financiamento (agência da União, fundação ou outra).
A realidade é que a agenda económica das corporações transnacionais é que comanda a marcha da Investigação Científica e Tecnológica na União Europeia. A concentração monopolista do capital e das actividades de produção progride. Paralelamente, avança a concentração da I&D num número reduzido de grandes instituições de investigação e de grandes universidades, ou de apertadas redes ou projectos de grande dimensão, ditos «excelentes». As patentes ou títulos de propriedade intelectual surgem como instrumentos também de apropriação e de investimento, tornaram-se em activos de novas oportunidades de negócio, também eles objecto de concentração monopolista.
Entretanto, os resultados da investigação fundamental e a formação de trabalhadores científicos altamente qualificados, não sendo propriedade privada desses mesmos interesses económicos, são um precioso mas mero substrato público de que gratuitamente se alimentam. Mas para os cidadãos Europeus, a investigação científica e a qualificação avançada, isto é, a criação de conhecimento e a sua fruição, são bens públicos de que não prescindem e que lhes são explicitamente garantidos como os direitos universais, pelas suas constituições nacionais.
A «constituição Europeia», proximamente objecto de ratificação na União, pretende subverter esses valores constitucionais, conferindo ao acesso à criação e à transmissão de conhecimento uma importância subalterna, ao diminuir o seu valor social como bem público para realçar o seu valor instrumental para o crescimento económico. Cabe aos trabalhadores científicos o dever cívico de a escrutinar e criticar, também do ponto de vista da Educação e da Ciência, para sobre este projecto Europeu formularem opinião própria e para com esta contribuírem para que todos os demais sobre ele formulem mais fundamentado juízo.