População de Lisboa teme a nova lei

Pânico nos bairros históricos

Com uma área de 84 quilómetros quadrados e uma população residente na ordem dos 600 mil habitantes, Lisboa é, para muitos, uma das mais bonitas cidades do mundo. Dividida por 53 freguesias, Lisboa é hoje uma cidade cada vez com menos habitantes e mais casas degradadas. A população teme as consequências que a nova Lei das Rendas trará para a cidade e para as suas vidas. Joaquim Cunha, presidente da Junta de Freguesia do Beato, e três moradores de Alfama falam sobre os seus medos e as possíveis repercussões nos bairros históricos.
A população do Beato, uma das freguesias mais antigas do concelho de Lisboa, com cerca de 17 mil habitantes, na sua maioria idosos, está apavorada com a possibilidade de o Governo aprovar, nos próximos dias, a nova Lei do Arrendamento Urbano.
Com o intuito de defender a população, a Junta de Freguesia do Beato (CDU) realizou, no passado dia 23 de Outubro, no Teatro Ibérico, uma sessão pública de esclarecimento, onde foram convidadas diversas organizações, entre as quais a Câmara Municipal, o Ministério das Cidades, a Associação de Comerciantes, a Associação de Inquilinos e a de Proprietários Lisbonenses. Só a Associação de Inquilinos Lisbonenses participou na iniciativa.
«Após ser conhecida, através dos meios de comunicação social, a lei 140, começou logo a haver uma certa movimentação da população que, naturalmente, entrou em pânico, tendo em conta aquilo que é público e as consequências que tais medidas podem trazer para esta gente», afirmou Joaquim Cunha, presidente da Junta do Beato, em declarações ao Avante!, informando que «a população daquela freguesia é muito idosa, a maioria dos contratos de arrendamento são anteriores a 1990, havendo casas com mais de cem anos».
«É gente que nasceu e sempre viveu no Beato», continuou o autarca comunista, apontando como principais problemas daquela população «a não legalização dos seus arrendamento, visto que estas casas passaram de pais para filhos», «o aumento das rendas, face às baixas reformas» e «a degradação dos imóveis, muitas vezes sem que o proprietário tivesse efectuado algum tipo de melhoramento no seu interior ou exterior»,

População contra a lei

Entretanto, os participantes na sessão pública, mais de meia centena, cheios de dúvidas e receios, manifestaram a sua forte contestação à Proposta de Lei n.º 140/IX, apresentada na Assembleia da República, sob a forma de pedido de autorização para legislar sobre o arrendamento, «que vai no sentido de abrir nova e grave instabilidade social, já que a lei facilita os despejos, elimina o direito à estabilidade do arrendamento e à habitação, em beneficio da especulação imobiliária».
Porque esta nova lei reduz a habitação a um mero bem económico, ou mercadoria, sem ter em conta a sua função social, aquela população do Beato afirmou-se ainda contra as futuras relações contratuais entre senhorios e inquilinos, traduzida na implementação de contratos de arrendamento por períodos de três anos sem garantias de renovação.
«A legislação proposta visa principalmente agilizar os despejos, quer de habitação quer de serviços, sendo exemplo disso a possibilidade de transferência de inquilinos para fogos de habitação social», denuncia uma moção aprovada, por unanimidade, no encontro, sublinhado que esta nova lei «não irá resolver os graves problemas habitacionais, a política de subsídios à renda, para cidadãos mais desfavorecidos, na medida em que terão um período limitado. As medidas preconizadas não irão dinamizar o mercado de arrendamento, mas tão só forçar as camadas médias da população a adquirirem habitação própria, porque se quisessem dinamizar o mercado de arrendamento, colocariam no mercado os mais de 500 mil fogos devolutos».

Lurdes Maria
«Estão a beneficiar os senhorios»

Lurdes Maria, nascida e criada em Alfama há 43 anos, é um dos cerca de 320 mil casos sob ameaça de despejo. Hoje, com um filho de 18 anos a seu cargo, e um salário de pouco mais de 400 euros mensais, cerca de 80 contos, prevê, caso seja aprovada a nova Lei do Arrendamento, um futuro pouco brilhante para a sua vida, isto porque o seu contrato de arrendamento vai deixar de ser válido.
«Aquilo que me faz mais confusão nesta lei, e que eu acho mais grave, é a questão dos contratos. No meu caso, mesmo tendo um contrato de 10 anos, este vai deixar de ser válido. O senhorio, eventualmente, vai fazer um novo, de apenas três anos, terei que pedir um subsídio ao Estado, e passado esse tempo, porque não vou conseguir suportar o valor da renda, vou para a rua, mais o meu filho», lamentou Lurdes Maria.
Sublinhando que a política de subsídios às rendas para os cidadão mais desfavorecidos e carenciados não irá resolver os graves problemas habitacionais destas camadas da população, Lurdes entende que o Governo, com esta nova lei, vai apenas beneficiar os senhorios e não os inquilinos.
«A meu ver, esta lei não tem nada a ver com os mais desfavorecidos, vai apenas beneficiar os senhorios. Por aquilo que eu percebi, os inquilinos vão ficar na rua ao fim de três anos e as indemnizações não vão dar nem para uma entrada num andar. Mais, com os nossos ordenados, os bancos não nos vão conceder empréstimos para compra de habitação, ou seja, só nos resta ir morar para debaixo da ponte», continuou.
Lurdes Maria manifestou-se ainda contra a obrigação, imposta pelo Governo de existindo habitação social disponível com renda apoiada no concelho e de igual tipologia, o arrendatário ser transferido para essa habitação, o que irá favorecer a libertação de fogos de zonas centrais destinadas a operações de especulação.
«Eu não quero ir morar para um bairro social. Nascida e criada nesta terra, tenho o direito de continuar a morar em Alfama, de ter uma habitação digna, para mim e para o meu filho», disse a inquilina.

Derrocada iminente

Profundamente chocada com toda esta situação, contou ainda o caso da sua mãe. Com uma reforma de 300 euros, e 65 anos de idade, a mãe de Lurdes vive dias aflitivos na sua casa.
«A minha mão vive num prédio completamente degradado, tem um quarto, uma cozinha e uma casa de banho – feita pelo meu pai, dentro de um vão de escada – quando chove tem que se ter cuidado com o telhado e com o algeroz. Um dia cai tudo dentro de casa», contou, acrescentando ainda que a habitação é sustentada por uma estrutura de barrotes que seguram as paredes.
«Os bombeiros dizem que o prédio está em perigo de derrocada, a protecção civil também, no entanto, um dia, quando fui falar com os proprietários, para pagar a renda da minha mãe, chamei-os à atenção, ao que eles me disseram: “Não há lei nenhuma que nos obrigue a fazer obras”». «Um dia o prédio cai, ela não vai ter dinheiro para pagar uma renda de 50 ou 60 contos, o que é que lhe vai acontecer?», interrogou-se Lurdes Maria.

Cassiano Martins
«Como é que vamos ficar?»

Cassiano Martins mora em Lisboa há 33 anos, em Alfama há 27. Tem um mini-mercado na Rua dos Remédios, que remodelou há três anos. Gastou três mil e quinhentos contos, mas agora não tem a certeza se valeu a pena. «As mercearias de bairro estão a atravessar uma grande crise por causa das grandes superfícies e da desertificação da cidade. Alfama está a ficar vazia, porque os casais jovens estão a comprar casa noutros lados, e o comércio vai morrendo a pouco e pouco», lamenta, referindo o aumento do imposto por conta de 100 para 250 contos e a provável subida das rendas.
Antes de fazer as obras, a loja era apenas uma mercearia antiga com balcão. Tudo foi transformado e remodelado: paredes, tecto, canalizações, electricidade, estantaria e máquinas.
«A loja tem de fazer dinheiro para sustentar as despesas. Se isso não acontecer, tenho de a fechar. Está aqui um caso bicudo. Vai ser uma cidade fantasma, não tenham dúvida. Há certas zonas de Lisboa que já estão desertas… Andou o Santana Lopes a pregar que ia trazer jovens para Lisboa, mas afinal está a pôr as pessoas de cá para fora. Isto não cabe na cabeça de ninguém», diz.
Cassiano Martins também fez obras em casa, depois do prédio ceder quando demoliram o edifício do lado. «Quando estavam a fazer os alicerces, o nosso prédio abriu ao meio. Eu estava em casa e vi a pedra mármore da janela a partir-se e a cair. Ficou tudo escavacado, o tecto, os azulejos… Na casa de banho metia-se a mão na parede e via-se a rua», recorda. Passou uma semana numa pensão com a família, exigiu obras ao senhorio e teve de aceitar o argumento das rendas baixas. «Arranjei a casa toda para ter uma habitação condigna. Ainda tenho as facturas. Se alguém quiser pagar…» Nestas obras, gastou quatro mil contos.
O futuro é uma incógnita para Cassiano. Tudo depende das rendas que terá de pagar pela casa e pela loja. Habitação e profissão estão, assim, dependentes da nova legislação e da vontade dos senhorios. «Gosto muito desta zona. Tenho aqui passado a maior parte da minha vida», afirma o comerciante. «Como é que vamos ficar?», interroga.

Rosário Marujo
«Vamos todos dormir para São Bento…»

Muitas reticências, muitos «ses», muitos medos, muitas preocupações e angústias. É assim sempre que Maria do Rosário Marujo pensa no seu futuro, especialmente desde que se fala na nova Lei de Arrendamento. Nascida e criada em Lisboa, desempregada e mãe de duas filhas, tem 375 euros de rendimento e paga uma renda de 175 euros por três assoalhadas de uma casa pequena em Alfama. Não sabe o que a espera, mas não augura nada de bom. O pior é que não se pode precaver.
«Se quiser comprar a casa, não tenho idade nem situação financeira para pedir um empréstimo. Ou o senhorio me põe na rua ou… Se chegarmos a esse ponto vai ser muito mau. Eu sei que há rendas que são muito baixas, mas não é ao fim de 40 anos que vão aumentar os alugueres a senhoras de 80 anos, com reformas pequenas que gastam metade em medicamentos. Vejo isto muito negro. Ainda não tomámos consciência do País em que vivemos ou não queremos tomar. De ano para ano, novas eleições, nova borrada…», comenta.
«A minha faixa etária não vai sair da cidade porque, se não tem condições para alugar casa, também não tem para comprar. Se formos despejados, vamos todos dormir para São Bento… Faço lá um acampamento…», diz Rosário, com ironia. Mas rapidamente recupera a preocupação: «Os senhores que fazem essas leis têm de pensar primeiro nas consequências. Vai ser extremamente complicado. Ali em Santa Apolónia vemos montes de pessoas a dormir debaixo das arcadas, porque não têm condições para ter uma casa. Hoje estão lá 20, com esta lei vão para lá mais 60. Só se é isso que o Governo quer…»

Demasiados acidentes

O prédio onde Rosário Marujo mora tem mais de cem anos mas sofreu as primeiras obras muito recentemente. Foi aliás esta inquilina que pediu à Câmara Municipal para restaurar o edifício, depois de acumular histórias infelizes durante anos: «Eu vivia com ratos, tinha alguidares espalhados pela casa por causa da chuva, o chão do meu quarto abateu todo… A vizinha de cima avisava quando tomava banho para eu não apanhar com a água dela. Fui eu que mandei fazer a casa de banho, porque não havia. Era degradante. Um dia, dois minutos depois de a minha filha mais velha se levantar, o tecto do quarto abateu. Se fosse um pouco antes, matava-a. As infiltrações da água eram tão grandes que entraram no sistema eléctrico e uma vez, quando acendi a luz, apanhei um choque que vim da cozinha para a porta da rua.» Nessa altura, Rosário estava grávida da filha mais nova e o acidente provocou o parto prematuramente.
As obras demoraram sete anos e a família foi realojada noutro bairro. Há dois anos, mãe e filhas regressaram a casa. «Quis voltar, estava há muitos anos aqui, gosto do sítio e não tinha lógica ficar tanto tempo a lutar para ter uma casa com condições e depois ir-me embora», comenta Rosário. Hoje encara outro problema, sem saber exactamente as suas dimensões e quais as armas com que pode contar. Entretanto prepara-se para passar algumas noites em branco, de olhos vigilantes, mente preocupada e coração apertado.


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