Mais um elo da cabala

Correia da Fonseca
Se bem me lembro, o senhor ministro Gomes da Silva, esse homem de Estado que Portugal bem pode mostrar à Europa como sua contribuição original para a Arte de Bem Cavalgar Todos os Media, associou o «Público» e o «Expresso» à “cabala involuntária” involuntariamente urdida contra o Governo. Por mim, espero que para a arrojada construção politológica formulada pelo senhor ministro não tenha sido omitido o lançamento pela TVI da “Quinta das Celebridades”; parece claro que não foi de modo algum por acaso que a “Quinta” foi lançada apenas dois meses depois da estreia do Governo Lopes/Portas, de vocação sem dúvida muito mais mediática que qualquer dos precedentes. E quanto às semelhanças e mesmo às afinidades entre o Governo e a “Quinta”, não vou cometer a feia acção de estragar ao eventual leitor desta coluna, se o há, o prazer de por si mesmo as encontrar.
Farei apenas notar que a “Quinta” está habitada por personalidades que se afirmaram menos pela prática de altos feitos que pela circunstância de se incluírem no que por cá, país pequeno e de limitadas posses, é possível arranjar em matéria de “jet set”. E acrescento, à cautela, que entre as afinidades que entendo releváveis entre Governo e “Quinta” de modo nenhum se conta, nem se poderia contar, o facto de ser um burro quem na “Quinta” responde à Júlia Pinheiro, que é ali quem intervém como voz da Comunicação Social: aliás, basta ver que o burro da “Quinta” é paciente, tem bons modos e não escouceia, para que fique eliminada qualquer absurda tentativa de estabelecer semelhanças. Quanto ao resto, é certo que na “Quinta” está quem tenha acedido à celebridade graças a invulgar capacidade de prestações sexuais, quem represente no interior daquela pequena comunidade o direito à diferença, quem se ocupe de cuidados de saúde (na área veterinária, é certo, e aí está uma diferença irredutível) sem que para tal prática exiba qualificações e eficácia bastantes. São situações e tendenciais analogias que refiro a título de exemplo, não vá alguém supor que é exorbitante a alusão às tais semelhanças entre “Quinta” e Governo. De resto, não serão, digamos, universais, totais, não se exija do aparente acaso o rigor de uma premeditada imitação. Quanto ao prazer de, com perdão da fórmula que se usa com o devido respeito, dar o nome aos bichos, esse é o jogo que se depõe nas mãos do leitor eventual que, se porventura existe, bem merece esse prazer sem que, infelizmente, por aí possa compensar-se dos graves desprazeres que já lhe terão sido provocados pelo Governo, não pelos residentes na “Quinta”.

Contudo, há diferenças

Retomando o fio inicial desta meada, regresso ao que acima se disse: porque a “Quinta” e os que a habitam, embora decerto não o queiram, são de um modo geral ridículos ao olhos dos telespectadores portugueses, é natural e de todo legítimo que a coincidência do advento do programa com o advento deste Governo seja interpretada pelo senhor ministro Gomes da Silva como uma peça da cabala que o seu olhar de águia sabiamente identificou. Porém, o pior é que nem tudo são semelhanças e, neste caso, há diferenças que são verdadeiramente funestas. A fundamental é que a “Quinta” e os seus residentes vão durar pouco tempo, dentro em breve cada um irá para o seu lado, e de entre eles nenhum alimenta o projecto de se demorar por ali até 2006, o que de facto seria insuportável, ao passo que os do Governo têm essa desgraçada intenção. Outra diferença, e essa mete-se não apenas pelos olhos dentro como verdadeiramente por todo o corpo, é que os da “Quinta” podem ser grotescos (e quanto a isso haverá ou não diferenças), causam-nos o prejuízo de nos fazer perder o nosso pouco tempo livre olhando-lhes as mediocridades e os disparates, mas não nos estragam a vida e muito menos o País. Com o Governo, é o que se sabe. E para registo de uma terceira diferença, decerto entre muitas outras, diga-se que os da “Quinta” estarão decerto a fazer pela vida, que alguns deles dão sinais de alguma vaidadezinha à sua escala, mas nenhum se atreve a mostrar-se tão convencido de méritos pessoais aliás inexistentes como alguns dos senhores ministros. Por tudo isto e muito mais, é fatal que os telespectadores portugueses, e também os portugueses que por excepção não sejam telespectadores, suspirem muito mais pelo fim do Governo que pelo fim da “Quinta das Celebridades”. Resta saber quando é que o produtor do primeiro se apercebe finalmente que o produto saiu pior que a encomenda que fizera e decide que já chega. A “Quinta” acaba lá para Dezembro. Mas a demissão do Governo, claramente incurso em muito mais feias coisas que as eventualmente praticáveis na “Quinta”, seria um melhor presente de Natal.


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