«As lutas pelo socialismo vão crescer»
Aproveitando a sua presença em Portugal para participar no Seminário Internacional «Civilização ou Barbárie», o Avante! entrevistou o jornalista e escritor francês Henri Alleg. Comunista de muitas lutas, correu o mundo e acompanhou de perto alguns dos mais importantes e decisivos acontecimentos dos últimos cinquenta anos.
Das suas viagens, nasceram reportagens – algumas publicadas em livro – que ajudaram à compreensão de vários processos, tão diversos como as desigualdades na América dos anos oitenta, a evolução na China ou o desaparecimento da União Soviética.
Aos 83 anos e com muito para contar, Henri Alleg permanece activo na denúncia do capitalismo e confia no socialismo como única alternativa para a sobrevivência da humanidade. Esta conversa, com um «conservador da esperança», peca por ser demasiado curta. Mas todas seriam…
Avante! – Comecemos pelo princípio. Que te parece o tema do Seminário, «Civilização ou Barbárie»?
Henri Alleg – Para os marxistas, é claro que essa «barbárie» é resultado do sistema capitalista. Para outros pode não ser assim tão claro, mas é esta a verdade. Mas o tema poderia ser outro, o seminário poderia perfeitamente intitular-se «Socialismo ou Barbárie».
Que alternativas existem, na tua opinião, ao capitalismo, sobretudo nesta sua fase tão agressiva?
Pegando na frase de Marx e Engels «Proletários de todos os países, uni-vos!» (que está perfeitamente actual e que continuará a estar), penso que na situação actual, marcada pela vontade de domínio do capitalismo norte-americano, se poderia dizer algo mais, do género «anti-imperialistas de todos os países, uni-vos!». É que me parece haver muitos que, não sendo proletários, estão a ser seriamente ameaçados por esta situação, uma situação de «guerra perpétua», de pequenas guerras, mas de guerras que se vão sucedendo, que não param.
Estão hoje conscientes da ameaça não apenas os que se batem por uma nova sociedade, mas também muitos daqueles que não possuem uma consciência tão profunda do que se passa, mas que sentem que o mundo caminha para o abismo se as coisas continuarem como estão.
E a luta, como travá-la?
Antes de mais, queria só dizer que me parece existirem no mundo contemporâneo, dois aspectos contraditórios. Por um lado, essa tal compreensão do problema e essa vontade de lutar contra a situação criada pelo imperialismo. Vontade essa revelada, por exemplo, nos fóruns e reuniões que se realizam em vários pontos do mundo.
Mas ao mesmo tempo, parece-me haver, pelo menos em alguns países, uma perda de influência da parte mais esclarecida da população e, em primeiro lugar, dos partidos comunistas. Há uma grande dificuldade em mobilizar para a acção. Em França, por exemplo, o Partido e os sindicatos já não são o que foram nem assumem o papel que antes assumiam. E são problemas que existem noutros países.
Não podemos dizer que em França não haja uma grande consciência de que o imperialismo norte-americano é negativo. E existe hoje, o que não acontecia antes, uma grande simpatia pelos palestinianos. E começa a surgir gente que não é comunista e que diz que o mal do mundo é o capitalismo. E isto é positivo. Não há é depois uma organização política que organize esta vontade de mudança.
E o que se pode fazer, para recuperar essa força?
A grande questão, a meu ver, é a convergência de todas as forças anti-imperialistas. E também a necessidade de reforçar as organizações de trabalhadores e dos que entendem que para pôr fim a toda essa barbárie são necessários os partidos marxistas, partidos comunistas, firmes na sua ideologia e ao mesmo tempo capazes de convergir com outros, mesmo que não estejam de acordo com eles, nas acções práticas.
Creio que há – e tem que continuar a haver! – um esforço de inteligência e sobretudo de tolerância na discussão entre os diferentes partidos comunistas. Não se pode pôr partidos de lado por terem tal ou tal posição… Há que continuar a discutir, mesmo que não estejamos de acordo. É que há os dirigentes dos partidos, mas há também os militantes, que têm as suas opiniões. Não se pode classificar os partidos entre «bons» e «maus». Há, isso sim, que continuar a discussão.
É notório que depois da queda da União Soviética, depois do fim de alguma unanimidade que existia em torno de alguns assuntos, tenha passado a haver dificuldades acrescidas em unirmo-nos. Mas não devemos desanimar, devemos, isso sim, continuar o combate e a discussão. Se há quem diga que não é já comunista, isso é outra coisa… Agora, se há uns que dizem que são marxistas, que são comunistas, mas que não concordam com um conjunto de coisas, devemos sempre continuar a discutir. Até porque a luta e os resultados da luta permitem também ir vendo e compreendendo melhor as coisas.
Queres exemplificar?
Por exemplo, o imperialismo… Há pessoas que no início diziam que o Saddam era um ditador, que matou muita gente… Sim, é isso tudo e fez isso tudo. Mas a intervenção americana no Iraque não é para resolver nada disso, mas sim para se imporem no Iraque, deitarem as mãos ao petróleo. E pessoas que antes não acreditavam nisso, hoje já acreditam, pois vêem o que se passa. Havia muita gente que até concordava com a guerra e que hoje já não concorda. Outra questão que tem dividido é a da União Europeia e da chamada «Constituição».
O que pensas tu sobre essa matéria?
Antes de mais, penso que os partidos comunistas não devem fazer nenhuma concessão nesta questão fundamental. Como sabes, há grandes diferenças entre os diversos partidos no que diz respeito à Europa. Tenho, eu e um conjunto de camaradas em França, em relação a esta questão, a ideia de que a União Europeia é uma formação destinada a defender e reforçar o capitalismo e o imperialismo.
E penso que esta Europa não pode tornar-se numa coisa positiva. Em tempos, havia discussões entre os social-democratas acerca da constituição dos «Estados Unidos da Europa». E já na altura o Lenine considerava ilusório pensar que, sob a égide do capitalismo, estes «Estados Unidos da Europa» poderiam alguma vez servir os interesses dos trabalhadores. O mesmo se pode dizer hoje. É uma ilusão pensar que esta Europa do capital pode, alguma vez, servir os interesses dos trabalhadores.
Eu concordo com as opiniões do Partido Comunista Grego e do Partido Comunista Português sobre esta matéria. Mas, como já disse, os partidos têm que continuar a discutir uns com os outros. Há situações que mudam e que permitem que as pessoas vejam as coisas mais claramente.
No teu livro SOS América descreves uma sociedade norte-americana a braços com uma grave crise, económica, social, moral. No entanto, eis o imperialismo norte-americano ao ataque… Que relação poderá ter essa crise com a actual ofensiva?
Esse livro foi escrito há muitos anos. Mas penso que a denúncia que é feita do imperialismo americano, que explora não só os outros povos, mas também o seu próprio povo, permanece actual. Talvez mesmo mais actual do que nunca. Acho que a exploração se agravou, tal como a «vontade» dos dirigentes norte-americanos de se imporem ao mundo inteiro. Isso era já verdadeiro há quinze anos, mas colocava-se com menos intensidade do que se coloca hoje. Na altura, quando escrevi esse livro (1985), ainda existia a União Soviética, o que obrigava os imperialistas norte-americanos a ter em conta a existência de uma outra força de natureza anti-imperialista e a terem de se conter.
Hoje, infelizmente, a URSS já não existe e o imperialismo americano é a única grande potência. Quando escrevi esse livro, havia uma enorme massa de gente no mundo que acreditava que a América era a defensora da liberdade, gente que acreditava no que diziam os dirigentes americanos. Estes apresentavam-se como os «amigos» do mundo inteiro, explicavam que as acusações de «imperialismo» não passavam de propaganda comunista, e que, ao contrário, os Estados Unidos eram, isso sim, uma força que lutava para melhorar a situação no mundo inteiro.
O que hoje já não acontece, em tua opinião?
Não. A própria guerra do Vietname abriu os olhos a muita gente. Mas ainda assim, não foi nada comparado com o que se passa actualmente… Hoje, quando os americanos se apresentam como gente que condena a tortura não são levados a sério, pois as pessoas sabem o que se passa no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, e em muitos outros locais. Acredito que há cada vez mais gente convencida de que os EUA têm um papel negativo no mundo. Sob todos os todos os pontos de vista: económico, político, moral… Se tivesse escrito esse livro hoje, teria traçado um retrato ainda mais negativo do que fiz na época.
A ausência da União Soviética faz com que o mundo esteja mais ameaçado ainda do que estava naquela altura. Mas há talvez um aspecto positivo. Hoje, a «abertura de espíritos» das pessoas é maior. Devo dizer que, relativamente aos comunistas, há em muitos lados uma maior abertura para o que dizemos quando falamos dos males do imperialismo. Durante a «Guerra Fria», havia muitas ilusões nas pessoas relativamente aos Estados Unidos, que entretanto desapareceram.
Como vês as hipóteses de resistência ao imperialismo hoje, sem a União Soviétiva? Refiro-me aos países socialistas que permanecem – Cuba, por exemplo – e a outros países, como a Venezuela…
É mais difícil hoje, sem a União Soviética. Vemos bem as dificuldades actuais de Cuba, sobretudo nas questões práticas. As suas máquinas vinham maioritariamente da URSS e da RDA. Mas também se tem visto como com o apoio das massas é possível manter um poder popular, pois a população está educada relativamente aos riscos do imperialismo. Assim, é possível avançar. Mas é complicado.
E há outros exemplos, como a Venezuela, onde não se fala em socialismo, mas onde se trava uma luta pela libertação e resistência ao domínio imperialista e ao poder da burguesia . E consegue fazê-lo porque se apoia no povo. Creio que se pode avançar muito nos anos que vêm. Haverá novas situações, novas possibilidades, outras revoluções e o socialismo voltará a estar na ordem do dia.
Voltando ao início... Socialismo ou barbárie, são estas as opções?
O capitalismo anda a par com a repressão, com o agravamento das condições de vida, a continuação das guerras, das torturas, das barbaridades. Ao fundo, encontra-se a barbárie. Uma barbárie talvez diferente, mais «electrónica» e «sofisticada», mas a barbárie. Por exemplo, dirigentes norte-americanos e israelitas legitimaram a tortura… No tempo das lutas de libertação nacional das colónias, havia massacres enormes, mas havia mais vergonha. Procurava-se esconder as coisas. Hoje há um tal cinismo que já se defende, publicamente, a prática desses crimes, que até são legalizados.
Mas acho que os povos começam a ter maior consciência das coisas. No tempo da Guerra Fria, os povos tinham que escolher: ou «comunismo ou “liberdade”», como diziam. Agora, é diferente… E confio que as coisas mudarão e que as lutas pelo socialismo crescerão.
Temos então razões para permanecermos «conservadores da esperança», como chama aos comunistas um personagem real de um dos teus livros*?
Ah, sim… Sem dúvida!
* O Grande Salto Atrás, Edições Avante! .
NA URSS, que conheceu de perto
«Não foi o socialismo nem o sistema soviético que falharam»
A queda da União Soviética teve consequências negativas para a luta dos trabalhadores e dos povos. O que, na tua opinião, aconteceu realmente?
Em primeiro lugar, gostava de dizer que vou responder à tua pergunta apenas como um camarada que tem a sua opinião, como qualquer outro camarada pode ter a sua, diferente. Bom, creio, em primeiro lugar, que no que respeita à URSS, a 70 anos de experiência socialista, ao seu desmembramento e desaparecimento, é necessária ainda reflexão e muita análise entre comunistas para retirar o maior número de ensinamentos que for possível acerca do que se passou. De bom e de mau. E houve coisas extraordinárias…
Mas tu estiveste lá, em diversos períodos, e conheceste de perto o país e o sistema…
Já na segunda metade dos anos 90, estive na Rússia (infelizmente a URSS já não existia) e falei com muitos camaradas. E o que mais me impressionou foi isto: como pôde um partido que tinha vinte milhões de membros ter desaparecido? Grande parte dos camaradas com quem falei me disseram que no tempo de Gorbatchov muita gente não estava de acordo com o rumo que as coisas estavam a tomar.
Mas então como explicar que em 20 milhões de pessoas não tenha havido 100 mil, nem 1000, nem 100, a dizer «camaradas, vamos parar com isto»? Pus esta questão a vários camaradas e eles disseram-me que estavam em desacordo com aquilo, mas que esperavam orientações superiores. O que é um pouco estúpido, pois esperavam ordens de Gorbatchov, que foi quem liquidou o Partido. Creio que foi um dos grandes problemas da União Soviética, a questão da democracia, da democracia socialista.
E foi esse, na tua opinião, o principal problema?
Não sei se foi o determinante, mas foi o que mais me impressionou. Não nos podemos esquecer que aquele país viveu sempre sob um forte cerco imperialista… Penso que há um conjunto de lições a tirar do fim da URSS. A primeira é precisamente a do funcionamento da democracia socialista. Um camarada com quem falei disse-me que em toda a União Soviética, quando o socialismo e o país estavam a ser destruídos, não houve uma única fábrica, nem uma única terra, onde tenha tocado uma sirene a dar o alarme…
Mas no teu livro O Grande Salto Atrás* avanças com a tese de que o povo da União Soviética queria manter o país e o sistema…
Quanto à opinião das pessoas... Ieltsin reuniu-se com o presidente da Ucrânia e da Bielorússia para dissolver a URSS. Mas apenas sete ou oito meses antes tinha havido um referendo questionando os soviéticos acerca da manutenção da União. E mais de 76 por cento da população da URSS disse que sim, que queria manter a União. Ao mesmo tempo, três tipos assinam, clandestinamente, numa floresta, a dissolução da URSS. E a verdade é que a larga maioria da população soviética – fossem russos, ucranianos, uzbeques ou tadjiques – queria manter a URSS e o socialismo.
Veja-se: depois da dissolução da União Soviética, organizam-se eleições na Rússia e o partido mais votado é, depois de tudo o que se tinha passado, o Partido Comunista da Federação Russa. Para mim, não se tratou de falhas nem do sistema soviético nem do sistema socialista, mas sim de dirigentes. E é também de ter em conta o desenvolvimento, a partir de dada altura, de uma camada da sociedade cada vez mais interessada no seu enriquecimento pessoal, que se foi deixando seduzir pelo modo de vida do capitalismo.
* Henri Alleg, O Grande Salto Atrás, Lisboa, Editorial Avante! – Colecção «Problemas do mundo contemporâneo», 1997
Estórias…
Henri Alleg tem muitas histórias. Tantas que um livro não seria suficiente para as registar a todas. Nos intervalos das conferências, era vê-lo, alegremente, a partilhar com outros camaradas episódios passados consigo ou que ouviu de outros.
Democracia socialista*
Sobre a democracia socialista, Henri Alleg contou três histórias: uma passada em 1925, outra nos anos sessenta e a última em Agosto de 1991. Na primeira, uma reunião do Partido numa cooperativa propunha-se decidir sobre a admissão de um novo membro no Partido. Homem trabalhador e dedicado às tarefas da jovem Revolução, foram-lhe tecidos rasgados elogios quanto à sua dedicação e capacidade de trabalho. Até trabalhadores não membros do Partido gabavam as características do indivíduo e defendiam a sua admissão no Partido. Uma camarada, concordando com as apreciações feitas, lembrou, porém, que o homem, ao fim-de-semana, bebia muito e que por vezes batia na mulher. «É este tipo de gente que queremos no Partido?», questionou. A intervenção da camarada suscitou uma acesa discussão. No final, decidiu-se dar ao homem um ano para «se corrigir».
Foi esta democracia – profundamente participada e característica dos comunistas – que Alleg não reconheceu já nos anos sessenta, quando visitou uma fábrica. Nesse dia, o responsável do Partido reuniu os trabalhadores para lhes falar da agressão imperialista ao Vietname e da necessidade de ajudar o povo vietnamita a resistir à agressão. E propôs que os trabalhadores dessem um dia do seu salário para ajudar aquele país amigo. «Todos estiveram de acordo, mas não houve qualquer tipo de discussão, de debate sobre o tema», recorda o jornalista francês.
A terceira história passa-se no dia da dissolução do Partido Comunista da União Soviética, em Agosto de 1991. Na sede do Comité Central trabalhavam duas mil pessoas, entre elas um velho amigo de Henri Alleg. E foi este amigo que lhe contou como se passou a «maior vergonha» da sua vida. Dois polícias da então nova milícia entraram na sede exigindo a saída imediata de todos para a rua, apenas com os seus bens pessoais. E os dois mil funcionários obedeceram, e abandonaram, pacífica e ordeiramente, a sede do seu Partido. «Nesse dia cheguei a casa e contei à minha mulher o que se tinha passado. E ela perguntou-me: “Dois mil comunistas na sede do CC e obedeceram todos à ordem de dois policiazecos, sem resistência?”. Foi a maior vergonha da minha vida…», confessou o russo.
Decadência moral
Noutro episódio, Henri Alleg conta que participou, em Leninegrado, nos últimos meses da URSS, num encontro do movimento da Paz. Nesse dia, reviu muitos camaradas, alguns dos quais que conhecia dos tempos da Argélia. Não conseguindo esconder alguma emoção, Alleg relata a conversa que manteve com uma comunista soviética, participante no encontro. «Antes – disse, triste, a soviética – sentíamo-nos orgulhosos por poder ajudar Cuba e a sua Revolução, por poder ajudar a Argélia e o Vietname. Agora, nem a nós próprios nos conseguimos ajudar». Para Alleg, o espírito internacionalista estava na mente dos soviéticos. Com a morte da URSS, foi também um pouco desse espírito que desapareceu.
Já depois da dissolução da União Soviética, Henri Alleg reencontrou um russo, que tinha conhecido alguns anos antes, na Argélia. Este, de nome Alexeiev, era um eminente académico e presidente de uma universidade, e membro do Partido de longa data. «Um dia foi a França e procurou-me», conta Alleg. E disse: «Vais ficar espantado, vou ser candidato a deputado e talvez venha a ser eleito.» À pergunta do francês se tinha sido proposto pelo Partido Comunista, Alexeiev respondeu: «Não, não sou candidato pelo Partido, mas sim por um partido “independente”, de religiosos.» Alleg, espantado, lembrou que ele não era religioso. O russo confirmou: «Pois não, mas é bom para os votos!»
* No seu livro O Grande Salto Atrás, Henri Alleg conta que o «adormecimento» do Partido não foi inocente. Se bem que viesse já de trás, Gorbatchov «necessitava de conseguir o poder absoluto no Partido e de reduzi-lo à impotência, porque, a par do seu debilitamento, o Partido continuava a ser a força essencial que garantia a manutenção do regime socialista». E os métodos foram variados: demissões forçadas de membros do Comité Central, e a promoção de suplentes que considerava «mais valorosos» . Em Fevereiro de 1990, por exemplo, numa reunião de Comité Central, acrescentou aos 249 membros do CC mais 300, escolhidos por ele, decretando a igualdade de direitos nas votações. Para Alleg, estas repetidas violações dos estatutos tinham um único objectivo: «afastar dos centros de decisão todos os que pudessem opor-se à “mutação” em curso e substituí-los por personalidades “seguras”: isto é, ganhas para a nova orientação e perfeitamente dóceis». p. 201
Biografia breve de uma vida cheia
Nascido em 1921, Henri Alleg é jornalista, escritor e historiador. Durante anos militante do Partido Comunista Argelino, do qual foi dirigente, foi director do Alger Républicain, que chegou a ser o jornal de maior tiragem de todo o Norte de África. Com a proibição do jornal em 1955, Alleg passa à clandestinidade, até ser preso em Junho de 1957 pelas tropas colonialistas francesas. Transferido para França, evade-se da prisão
Na prisão argelina de El Biar, é violentamente torturado. É este período da sua vida que narra no livro, La Question, considerado um dos mais importantes livros do século XX. A importância do livro, editado recentemente em Portugal, reside sobretudo no facto de provar a possibilidade de resistência às piores e mais duras torturas. Antes do 25 de Abril, foram distribuídas clandestinamente em Portugal – onde a tortura era prática diária e corrente – traduções de excertos da obra.
Depois da independência da Argélia, volta a assumir a direcção do jornal, que seria novamente interditado com as mudanças internas ocorridas no novo país. De regresso a França, torna-se militante do Partido Comunista Francês e assume um lugar de direcção no L´Humanité, à época órgão central do PCF.
Em reportagens, percorreu o mundo e escreveu vários livros, alguns dos quais editados em Portugal. São os casos de SOS América e O Século do Dragão, editados pela Caminho, O Grande Salto Atrás, publicado pela Avante!, para além do já mencionado A Questão, editado recentemente pela Mareantes.
Henri Alleg – Para os marxistas, é claro que essa «barbárie» é resultado do sistema capitalista. Para outros pode não ser assim tão claro, mas é esta a verdade. Mas o tema poderia ser outro, o seminário poderia perfeitamente intitular-se «Socialismo ou Barbárie».
Que alternativas existem, na tua opinião, ao capitalismo, sobretudo nesta sua fase tão agressiva?
Pegando na frase de Marx e Engels «Proletários de todos os países, uni-vos!» (que está perfeitamente actual e que continuará a estar), penso que na situação actual, marcada pela vontade de domínio do capitalismo norte-americano, se poderia dizer algo mais, do género «anti-imperialistas de todos os países, uni-vos!». É que me parece haver muitos que, não sendo proletários, estão a ser seriamente ameaçados por esta situação, uma situação de «guerra perpétua», de pequenas guerras, mas de guerras que se vão sucedendo, que não param.
Estão hoje conscientes da ameaça não apenas os que se batem por uma nova sociedade, mas também muitos daqueles que não possuem uma consciência tão profunda do que se passa, mas que sentem que o mundo caminha para o abismo se as coisas continuarem como estão.
E a luta, como travá-la?
Antes de mais, queria só dizer que me parece existirem no mundo contemporâneo, dois aspectos contraditórios. Por um lado, essa tal compreensão do problema e essa vontade de lutar contra a situação criada pelo imperialismo. Vontade essa revelada, por exemplo, nos fóruns e reuniões que se realizam em vários pontos do mundo.
Mas ao mesmo tempo, parece-me haver, pelo menos em alguns países, uma perda de influência da parte mais esclarecida da população e, em primeiro lugar, dos partidos comunistas. Há uma grande dificuldade em mobilizar para a acção. Em França, por exemplo, o Partido e os sindicatos já não são o que foram nem assumem o papel que antes assumiam. E são problemas que existem noutros países.
Não podemos dizer que em França não haja uma grande consciência de que o imperialismo norte-americano é negativo. E existe hoje, o que não acontecia antes, uma grande simpatia pelos palestinianos. E começa a surgir gente que não é comunista e que diz que o mal do mundo é o capitalismo. E isto é positivo. Não há é depois uma organização política que organize esta vontade de mudança.
E o que se pode fazer, para recuperar essa força?
A grande questão, a meu ver, é a convergência de todas as forças anti-imperialistas. E também a necessidade de reforçar as organizações de trabalhadores e dos que entendem que para pôr fim a toda essa barbárie são necessários os partidos marxistas, partidos comunistas, firmes na sua ideologia e ao mesmo tempo capazes de convergir com outros, mesmo que não estejam de acordo com eles, nas acções práticas.
Creio que há – e tem que continuar a haver! – um esforço de inteligência e sobretudo de tolerância na discussão entre os diferentes partidos comunistas. Não se pode pôr partidos de lado por terem tal ou tal posição… Há que continuar a discutir, mesmo que não estejamos de acordo. É que há os dirigentes dos partidos, mas há também os militantes, que têm as suas opiniões. Não se pode classificar os partidos entre «bons» e «maus». Há, isso sim, que continuar a discussão.
É notório que depois da queda da União Soviética, depois do fim de alguma unanimidade que existia em torno de alguns assuntos, tenha passado a haver dificuldades acrescidas em unirmo-nos. Mas não devemos desanimar, devemos, isso sim, continuar o combate e a discussão. Se há quem diga que não é já comunista, isso é outra coisa… Agora, se há uns que dizem que são marxistas, que são comunistas, mas que não concordam com um conjunto de coisas, devemos sempre continuar a discutir. Até porque a luta e os resultados da luta permitem também ir vendo e compreendendo melhor as coisas.
Queres exemplificar?
Por exemplo, o imperialismo… Há pessoas que no início diziam que o Saddam era um ditador, que matou muita gente… Sim, é isso tudo e fez isso tudo. Mas a intervenção americana no Iraque não é para resolver nada disso, mas sim para se imporem no Iraque, deitarem as mãos ao petróleo. E pessoas que antes não acreditavam nisso, hoje já acreditam, pois vêem o que se passa. Havia muita gente que até concordava com a guerra e que hoje já não concorda. Outra questão que tem dividido é a da União Europeia e da chamada «Constituição».
O que pensas tu sobre essa matéria?
Antes de mais, penso que os partidos comunistas não devem fazer nenhuma concessão nesta questão fundamental. Como sabes, há grandes diferenças entre os diversos partidos no que diz respeito à Europa. Tenho, eu e um conjunto de camaradas em França, em relação a esta questão, a ideia de que a União Europeia é uma formação destinada a defender e reforçar o capitalismo e o imperialismo.
E penso que esta Europa não pode tornar-se numa coisa positiva. Em tempos, havia discussões entre os social-democratas acerca da constituição dos «Estados Unidos da Europa». E já na altura o Lenine considerava ilusório pensar que, sob a égide do capitalismo, estes «Estados Unidos da Europa» poderiam alguma vez servir os interesses dos trabalhadores. O mesmo se pode dizer hoje. É uma ilusão pensar que esta Europa do capital pode, alguma vez, servir os interesses dos trabalhadores.
Eu concordo com as opiniões do Partido Comunista Grego e do Partido Comunista Português sobre esta matéria. Mas, como já disse, os partidos têm que continuar a discutir uns com os outros. Há situações que mudam e que permitem que as pessoas vejam as coisas mais claramente.
No teu livro SOS América descreves uma sociedade norte-americana a braços com uma grave crise, económica, social, moral. No entanto, eis o imperialismo norte-americano ao ataque… Que relação poderá ter essa crise com a actual ofensiva?
Esse livro foi escrito há muitos anos. Mas penso que a denúncia que é feita do imperialismo americano, que explora não só os outros povos, mas também o seu próprio povo, permanece actual. Talvez mesmo mais actual do que nunca. Acho que a exploração se agravou, tal como a «vontade» dos dirigentes norte-americanos de se imporem ao mundo inteiro. Isso era já verdadeiro há quinze anos, mas colocava-se com menos intensidade do que se coloca hoje. Na altura, quando escrevi esse livro (1985), ainda existia a União Soviética, o que obrigava os imperialistas norte-americanos a ter em conta a existência de uma outra força de natureza anti-imperialista e a terem de se conter.
Hoje, infelizmente, a URSS já não existe e o imperialismo americano é a única grande potência. Quando escrevi esse livro, havia uma enorme massa de gente no mundo que acreditava que a América era a defensora da liberdade, gente que acreditava no que diziam os dirigentes americanos. Estes apresentavam-se como os «amigos» do mundo inteiro, explicavam que as acusações de «imperialismo» não passavam de propaganda comunista, e que, ao contrário, os Estados Unidos eram, isso sim, uma força que lutava para melhorar a situação no mundo inteiro.
O que hoje já não acontece, em tua opinião?
Não. A própria guerra do Vietname abriu os olhos a muita gente. Mas ainda assim, não foi nada comparado com o que se passa actualmente… Hoje, quando os americanos se apresentam como gente que condena a tortura não são levados a sério, pois as pessoas sabem o que se passa no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, e em muitos outros locais. Acredito que há cada vez mais gente convencida de que os EUA têm um papel negativo no mundo. Sob todos os todos os pontos de vista: económico, político, moral… Se tivesse escrito esse livro hoje, teria traçado um retrato ainda mais negativo do que fiz na época.
A ausência da União Soviética faz com que o mundo esteja mais ameaçado ainda do que estava naquela altura. Mas há talvez um aspecto positivo. Hoje, a «abertura de espíritos» das pessoas é maior. Devo dizer que, relativamente aos comunistas, há em muitos lados uma maior abertura para o que dizemos quando falamos dos males do imperialismo. Durante a «Guerra Fria», havia muitas ilusões nas pessoas relativamente aos Estados Unidos, que entretanto desapareceram.
Como vês as hipóteses de resistência ao imperialismo hoje, sem a União Soviétiva? Refiro-me aos países socialistas que permanecem – Cuba, por exemplo – e a outros países, como a Venezuela…
É mais difícil hoje, sem a União Soviética. Vemos bem as dificuldades actuais de Cuba, sobretudo nas questões práticas. As suas máquinas vinham maioritariamente da URSS e da RDA. Mas também se tem visto como com o apoio das massas é possível manter um poder popular, pois a população está educada relativamente aos riscos do imperialismo. Assim, é possível avançar. Mas é complicado.
E há outros exemplos, como a Venezuela, onde não se fala em socialismo, mas onde se trava uma luta pela libertação e resistência ao domínio imperialista e ao poder da burguesia . E consegue fazê-lo porque se apoia no povo. Creio que se pode avançar muito nos anos que vêm. Haverá novas situações, novas possibilidades, outras revoluções e o socialismo voltará a estar na ordem do dia.
Voltando ao início... Socialismo ou barbárie, são estas as opções?
O capitalismo anda a par com a repressão, com o agravamento das condições de vida, a continuação das guerras, das torturas, das barbaridades. Ao fundo, encontra-se a barbárie. Uma barbárie talvez diferente, mais «electrónica» e «sofisticada», mas a barbárie. Por exemplo, dirigentes norte-americanos e israelitas legitimaram a tortura… No tempo das lutas de libertação nacional das colónias, havia massacres enormes, mas havia mais vergonha. Procurava-se esconder as coisas. Hoje há um tal cinismo que já se defende, publicamente, a prática desses crimes, que até são legalizados.
Mas acho que os povos começam a ter maior consciência das coisas. No tempo da Guerra Fria, os povos tinham que escolher: ou «comunismo ou “liberdade”», como diziam. Agora, é diferente… E confio que as coisas mudarão e que as lutas pelo socialismo crescerão.
Temos então razões para permanecermos «conservadores da esperança», como chama aos comunistas um personagem real de um dos teus livros*?
Ah, sim… Sem dúvida!
* O Grande Salto Atrás, Edições Avante! .
NA URSS, que conheceu de perto
«Não foi o socialismo nem o sistema soviético que falharam»
A queda da União Soviética teve consequências negativas para a luta dos trabalhadores e dos povos. O que, na tua opinião, aconteceu realmente?
Em primeiro lugar, gostava de dizer que vou responder à tua pergunta apenas como um camarada que tem a sua opinião, como qualquer outro camarada pode ter a sua, diferente. Bom, creio, em primeiro lugar, que no que respeita à URSS, a 70 anos de experiência socialista, ao seu desmembramento e desaparecimento, é necessária ainda reflexão e muita análise entre comunistas para retirar o maior número de ensinamentos que for possível acerca do que se passou. De bom e de mau. E houve coisas extraordinárias…
Mas tu estiveste lá, em diversos períodos, e conheceste de perto o país e o sistema…
Já na segunda metade dos anos 90, estive na Rússia (infelizmente a URSS já não existia) e falei com muitos camaradas. E o que mais me impressionou foi isto: como pôde um partido que tinha vinte milhões de membros ter desaparecido? Grande parte dos camaradas com quem falei me disseram que no tempo de Gorbatchov muita gente não estava de acordo com o rumo que as coisas estavam a tomar.
Mas então como explicar que em 20 milhões de pessoas não tenha havido 100 mil, nem 1000, nem 100, a dizer «camaradas, vamos parar com isto»? Pus esta questão a vários camaradas e eles disseram-me que estavam em desacordo com aquilo, mas que esperavam orientações superiores. O que é um pouco estúpido, pois esperavam ordens de Gorbatchov, que foi quem liquidou o Partido. Creio que foi um dos grandes problemas da União Soviética, a questão da democracia, da democracia socialista.
E foi esse, na tua opinião, o principal problema?
Não sei se foi o determinante, mas foi o que mais me impressionou. Não nos podemos esquecer que aquele país viveu sempre sob um forte cerco imperialista… Penso que há um conjunto de lições a tirar do fim da URSS. A primeira é precisamente a do funcionamento da democracia socialista. Um camarada com quem falei disse-me que em toda a União Soviética, quando o socialismo e o país estavam a ser destruídos, não houve uma única fábrica, nem uma única terra, onde tenha tocado uma sirene a dar o alarme…
Mas no teu livro O Grande Salto Atrás* avanças com a tese de que o povo da União Soviética queria manter o país e o sistema…
Quanto à opinião das pessoas... Ieltsin reuniu-se com o presidente da Ucrânia e da Bielorússia para dissolver a URSS. Mas apenas sete ou oito meses antes tinha havido um referendo questionando os soviéticos acerca da manutenção da União. E mais de 76 por cento da população da URSS disse que sim, que queria manter a União. Ao mesmo tempo, três tipos assinam, clandestinamente, numa floresta, a dissolução da URSS. E a verdade é que a larga maioria da população soviética – fossem russos, ucranianos, uzbeques ou tadjiques – queria manter a URSS e o socialismo.
Veja-se: depois da dissolução da União Soviética, organizam-se eleições na Rússia e o partido mais votado é, depois de tudo o que se tinha passado, o Partido Comunista da Federação Russa. Para mim, não se tratou de falhas nem do sistema soviético nem do sistema socialista, mas sim de dirigentes. E é também de ter em conta o desenvolvimento, a partir de dada altura, de uma camada da sociedade cada vez mais interessada no seu enriquecimento pessoal, que se foi deixando seduzir pelo modo de vida do capitalismo.
* Henri Alleg, O Grande Salto Atrás, Lisboa, Editorial Avante! – Colecção «Problemas do mundo contemporâneo», 1997
Estórias…
Henri Alleg tem muitas histórias. Tantas que um livro não seria suficiente para as registar a todas. Nos intervalos das conferências, era vê-lo, alegremente, a partilhar com outros camaradas episódios passados consigo ou que ouviu de outros.
Democracia socialista*
Sobre a democracia socialista, Henri Alleg contou três histórias: uma passada em 1925, outra nos anos sessenta e a última em Agosto de 1991. Na primeira, uma reunião do Partido numa cooperativa propunha-se decidir sobre a admissão de um novo membro no Partido. Homem trabalhador e dedicado às tarefas da jovem Revolução, foram-lhe tecidos rasgados elogios quanto à sua dedicação e capacidade de trabalho. Até trabalhadores não membros do Partido gabavam as características do indivíduo e defendiam a sua admissão no Partido. Uma camarada, concordando com as apreciações feitas, lembrou, porém, que o homem, ao fim-de-semana, bebia muito e que por vezes batia na mulher. «É este tipo de gente que queremos no Partido?», questionou. A intervenção da camarada suscitou uma acesa discussão. No final, decidiu-se dar ao homem um ano para «se corrigir».
Foi esta democracia – profundamente participada e característica dos comunistas – que Alleg não reconheceu já nos anos sessenta, quando visitou uma fábrica. Nesse dia, o responsável do Partido reuniu os trabalhadores para lhes falar da agressão imperialista ao Vietname e da necessidade de ajudar o povo vietnamita a resistir à agressão. E propôs que os trabalhadores dessem um dia do seu salário para ajudar aquele país amigo. «Todos estiveram de acordo, mas não houve qualquer tipo de discussão, de debate sobre o tema», recorda o jornalista francês.
A terceira história passa-se no dia da dissolução do Partido Comunista da União Soviética, em Agosto de 1991. Na sede do Comité Central trabalhavam duas mil pessoas, entre elas um velho amigo de Henri Alleg. E foi este amigo que lhe contou como se passou a «maior vergonha» da sua vida. Dois polícias da então nova milícia entraram na sede exigindo a saída imediata de todos para a rua, apenas com os seus bens pessoais. E os dois mil funcionários obedeceram, e abandonaram, pacífica e ordeiramente, a sede do seu Partido. «Nesse dia cheguei a casa e contei à minha mulher o que se tinha passado. E ela perguntou-me: “Dois mil comunistas na sede do CC e obedeceram todos à ordem de dois policiazecos, sem resistência?”. Foi a maior vergonha da minha vida…», confessou o russo.
Decadência moral
Noutro episódio, Henri Alleg conta que participou, em Leninegrado, nos últimos meses da URSS, num encontro do movimento da Paz. Nesse dia, reviu muitos camaradas, alguns dos quais que conhecia dos tempos da Argélia. Não conseguindo esconder alguma emoção, Alleg relata a conversa que manteve com uma comunista soviética, participante no encontro. «Antes – disse, triste, a soviética – sentíamo-nos orgulhosos por poder ajudar Cuba e a sua Revolução, por poder ajudar a Argélia e o Vietname. Agora, nem a nós próprios nos conseguimos ajudar». Para Alleg, o espírito internacionalista estava na mente dos soviéticos. Com a morte da URSS, foi também um pouco desse espírito que desapareceu.
Já depois da dissolução da União Soviética, Henri Alleg reencontrou um russo, que tinha conhecido alguns anos antes, na Argélia. Este, de nome Alexeiev, era um eminente académico e presidente de uma universidade, e membro do Partido de longa data. «Um dia foi a França e procurou-me», conta Alleg. E disse: «Vais ficar espantado, vou ser candidato a deputado e talvez venha a ser eleito.» À pergunta do francês se tinha sido proposto pelo Partido Comunista, Alexeiev respondeu: «Não, não sou candidato pelo Partido, mas sim por um partido “independente”, de religiosos.» Alleg, espantado, lembrou que ele não era religioso. O russo confirmou: «Pois não, mas é bom para os votos!»
* No seu livro O Grande Salto Atrás, Henri Alleg conta que o «adormecimento» do Partido não foi inocente. Se bem que viesse já de trás, Gorbatchov «necessitava de conseguir o poder absoluto no Partido e de reduzi-lo à impotência, porque, a par do seu debilitamento, o Partido continuava a ser a força essencial que garantia a manutenção do regime socialista». E os métodos foram variados: demissões forçadas de membros do Comité Central, e a promoção de suplentes que considerava «mais valorosos» . Em Fevereiro de 1990, por exemplo, numa reunião de Comité Central, acrescentou aos 249 membros do CC mais 300, escolhidos por ele, decretando a igualdade de direitos nas votações. Para Alleg, estas repetidas violações dos estatutos tinham um único objectivo: «afastar dos centros de decisão todos os que pudessem opor-se à “mutação” em curso e substituí-los por personalidades “seguras”: isto é, ganhas para a nova orientação e perfeitamente dóceis». p. 201
Biografia breve de uma vida cheia
Nascido em 1921, Henri Alleg é jornalista, escritor e historiador. Durante anos militante do Partido Comunista Argelino, do qual foi dirigente, foi director do Alger Républicain, que chegou a ser o jornal de maior tiragem de todo o Norte de África. Com a proibição do jornal em 1955, Alleg passa à clandestinidade, até ser preso em Junho de 1957 pelas tropas colonialistas francesas. Transferido para França, evade-se da prisão
Na prisão argelina de El Biar, é violentamente torturado. É este período da sua vida que narra no livro, La Question, considerado um dos mais importantes livros do século XX. A importância do livro, editado recentemente em Portugal, reside sobretudo no facto de provar a possibilidade de resistência às piores e mais duras torturas. Antes do 25 de Abril, foram distribuídas clandestinamente em Portugal – onde a tortura era prática diária e corrente – traduções de excertos da obra.
Depois da independência da Argélia, volta a assumir a direcção do jornal, que seria novamente interditado com as mudanças internas ocorridas no novo país. De regresso a França, torna-se militante do Partido Comunista Francês e assume um lugar de direcção no L´Humanité, à época órgão central do PCF.
Em reportagens, percorreu o mundo e escreveu vários livros, alguns dos quais editados em Portugal. São os casos de SOS América e O Século do Dragão, editados pela Caminho, O Grande Salto Atrás, publicado pela Avante!, para além do já mencionado A Questão, editado recentemente pela Mareantes.