Governo quer tramar a Segurança Social

Eugénio Rosa
Uma das ideias que mais se procura espalhar entre a população e nomeadamente entre os trabalhadores é que a sustentabilidade financeira do sistema público de Segurança Social está em perigo, e que não tem possibilidades de pagar no futuro as pensões de reforma de acordo com o sistema actualmente em vigor.
Embora os defensores desta tese não a consigam demonstrar de uma forma fundamentada e tecnicamente consistente (as mais das vezes limitam-se a referir estudos ou previsões que ninguém conhece e cujos fundamentos técnicos não apresentam), no entanto esperam que tal afirmação, de tanto repetida, designadamente a nível de órgãos de comunicação social, acabará por passar como verdadeira, pois haverá sempre quem acredite nela por falta de informação.
Procura-se lançar a dúvida sobre a sustentabilidade financeira do sistema público da Segurança Social, e levar um número crescente de portugueses a investir em fundos de pensões privados, criando desta forma o mercado que os bancos e as seguradoras, que controlam maioritariamente esses fundos, precisam para desenvolver um negócio que é altamente rentável.
Aproveitando a publicação pelo Banco de Portugal do seu Boletim Económico de Junho de 2004, que contém dados sobre a evolução da economia portuguesa nos últimos anos, vai-se procurar mostrar neste pequeno estudo de investigação, utilizando esse dados, que é possível garantir a sustentabilidade financeira do sistema público de Segurança Social desde que sejam tomadas as medidas técnicas adequadas.

Segurança Social perdeu 1,7% do PIB em 2003

A fraude, a evasão, a fuga, as isenções, a multiplicidade de taxas, etc., à Segurança Social atingem valores gigantescos e não têm diminuído. Até cresceram nos últimos dois anos com o ministro Bagão Félix, como provam os próprios dados oficiais.
O quadro I dá uma ideia da dimensão da perda de receitas pela Segurança Social, e foi construído com base em dados oficiais.
Antes de tirar quaisquer conclusões a partir dos dados do quadro I, interessa explicar como se obtiveram esses dados, até para que o leitor possa avaliar a sua consistência técnica.
Assim, os dados da coluna «Remunerações - País» são os constantes do Boletim Económico do Banco de Portugal (Junho de 2004), a que se retiraram as contribuições patronais para a Segurança Social, pois os publicados incluem esses valores.
Para se poder comparar os valores que a Segurança Social recebe com aqueles que devia receber, e assim estimar a perda de receita, tem-se antes de retirar a massa salarial dos trabalhadores não abrangidos pelo sistema público de Segurança Social, que são os trabalhadores da Função Pública (abrangidos pela CGA), uma parte dos bancários (abrangidos por fundos de pensões) e outras categorias profissionais de muito menor peso. E foi isso o que se fez.
Em relação aos trabalhadores da Função Pública, utilizou-se dados constantes dos relatórios publicados pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) com base nos quais é fácil calcular as remunerações auferidas por esses trabalhadores, pois é com base nestas que são calculadas as suas quotas. Relativamente aos restantes trabalhadores (bancários e outros) começou-se por fazer uma estimativa do seu número (o número dos bancários foram os da associação de bancos) e com base na remuneração média anual calculada pelo Banco de Portugal obteve-se uma estimativa das suas remunerações.
E os resultados dos cálculos constam do quadro I, na coluna «Remunerações do País - Sem função Pública e Outros».
Ao valor de «Remunerações» assim obtido aplicou-se então a chamada Taxa Social Única, ou seja, 34,75% (11% pago pelos trabalhadores e 23,75% pago pela empresas), e assim obteve-se o valor das «Contribuições» que o sistema público de Segurança Social devia receber. Comparou-se depois este valor com as «Contribuições» efectivamente recebidas pela Segurança Social que constam das Contas de Gerência do Estado referente aos mesmos anos.
E as conclusões que se tiram, com base nos dados do quadro I, são as seguintes. Considerando o período 1999 – 2003, a Segurança Social perdeu, devido à fraude, à evasão, à não cobrança, a isenções, multiplicidade de taxas, etc., receitas avaliadas em 9582,3 milhões de euros (1921 milhões de contos), em apenas 5 anos.
Esta perda de receita (contribuições não cobradas mas que legalmente o deviam ser), no lugar de diminuir, até tem aumentado. Efectivamente, nos últimos dois anos, ou seja, como o ministro Bagão Félix, atingiu os valores mais elevados do quinquénio analisado tanto em valor absoluto com em percentagem do PIB.
Considerando os dois últimos anos (2002 e 2003), a perda de receita atingiu 4538,3 milhões de euros, enquanto nos dois anos anteriores (2000 e 2001) tinha alcançado 3274,5 milhões de euros, portanto teve um aumento de 38,5%. Em percentagem do PIB (Produto Interno Bruto) a perda de receita atingiu, com Bagão Félix, 1,7% do PIB quando nos dois anos anteriores fora de 1,4% do PIB.

A responsabilidade de Bagão Félix

É evidente que o combate à fraude, à evasão, à não cobrança, às isenções, etc., que agravam desigualdades e criam problemas financeiros à Segurança Social (estes sim, é que põem em perigo a sustentabilidade financeira futura) não constituiu uma preocupação importante do ministro Bagão Félix. Conclui-se isso pelos resultados obtidos, já que os próprios dados oficiais mostram que o que se verificou foi um aumento significativo nos valor das receitas potenciais da Segurança Social que não foram cobradas.
E isso teve naturalmente como causas a degradação da Inspecção da Segurança Social registada durante a permanência de Bagão como ministro da Segurança Social, em que os trabalhadores que se reformaram nesta área não foram substituídos; a profunda desarticulação que continua a existir entre a Inspecção Tributária (dos impostos) e a Inspecção da Segurança Social, que não conjugam esforços, já que para fazer o mesmo trabalho numa mesma empresa – cobrança das dívidas ao Estado – têm que lá ir duas vezes; e a inexistência de uma base de dados informatizada e actualizada sobre as empresas que permita, por um lado, uma acção de fiscalização planeada e consistente e, por outro lado, a possibilidade dos trabalhadores saberem, via Internet, se os descontos feitos nos seus salários bem como as contribuições das empresas foram entregues à Segurança Social.
O ministro Bagão Félix deu pouca atenção a tudo isto, porque estava mais interessado em introduzir o «plafonamento nas contribuições» para assim assegurar o crescimento de um mercado para os fundos de pensões privados. Repetindo, é evidente que esta situação tinha de determinar o crescimento significativo da perda de receita pela Segurança Social nos dois últimos anos, como mostram os dados oficiais constantes do quadro I.

Financiamento desadequado da Segurança Social

O actual sistema de cálculo das contribuições das empresas foi pensado há cerca de 50 anos, quando dominavam as empresas de trabalho intensivo. Actualmente, com o desenvolvimento da tecnologia e do conhecimento, as empresas que criam mais riqueza são as de capital e conhecimento intensivo e não de trabalho intensivo, o que naturalmente exige um reajustamento do sistema de cálculo das contribuições das empresas, que continua por se fazer.
O quadro II, construído com dados do INE, mostra a desigualdade que tal sistema gera entre as próprias empresas, criando até uma situação de concorrência desleal entre elas.
A riqueza criada por uma empresa é medida pelo VAB (Valor Acrescentado Bruto), e calcula-se deduzindo ao valor do produzido tudo aquilo que ela adquiriu no exterior e gastou com a essa produção.
Em relação a todas as empresas não financeiras, a percentagem que as contribuições para a Segurança Social representam em relação ao VAB, ou seja, à riqueza criada, representou, em 1997, 9,5% do VAB e, em 2000, 9,8% do seu VAB.
No entanto, se analisarmos o seu peso por grupos de empresas (as que têm menos de 20 trabalhadores; as que têm entre 20 e 99 trabalhadores; e as que têm 100 ou mais trabalhadores) as desigualdades são grandes.
Assim, de acordo com o sistema de cálculo de contribuições das empresas em vigor, no ano 2000 por ex., as com menos de 20 trabalhadores tiveram de contribuir para a Segurança Social com 10,3% da riqueza que criaram; as que tinham entre 20 e 99 trabalhadores tiveram de contribuir com 11,4% do VAB; e as com 100 ou mais trabalhadores tiveram de contribuir para a Segurança Social apenas com 8,7% da riqueza que criaram. A injustiça provocada pelo sistema actual é clara e grande.
Se o actual sistema fosse alterado e se as contribuições das empresas para a Segurança Social passassem a ser determinadas com base na riqueza criada por cada uma delas – as empresas que criam mais riqueza contribuiriam com mais para a Segurança Social e as que criam menos riqueza contribuiriam com menos – eliminar-se-iam aquelas injustiças que fomentam a concorrência desleal entre as empresas (as que criam mais emprego são as mais penalizadas porque as suas contribuições são calculadas com base nas remunerações pagas) e, por outro lado, assegurar-se-ia um volume de receitas adequado que aumentaria de acordo com o crescimento da riqueza nacional, contribuindo assim também para garantir a sustentabilidade financeira da Segurança Social.
E isto porque a riqueza no País tem crescido continuamente, mas o que tem aumentado muito menos é a parte dessa riqueza que reverte para os trabalhadores sob a forma de remunerações. Por exemplo, o PIB (a riqueza criada em todo o País), segundo dados constantes do Boletim Económico do Banco de Portugal, atingiu, em 2003, 130 855 milhões de euros, enquanto as «Remunerações» recebidas por todos os trabalhadores portugueses (incluindo os da Função Pública, bancários, etc.) somaram, nesse mesmo ano, apenas 52 371 milhões de euros, o que representa somente 40% do PIB, apesar de representarem 70% dos activos e 75% da população empregada.

Alternativas não faltam

Contrariamente ao que muitas vezes se pretende crer, o cálculo da contribuições das empresas para a Segurança Social com base na riqueza criada por elas é, sob o ponto de vista técnico, perfeitamente viável e exequível.
Para concluir isso basta ter presente o seguinte: O cálculo das contribuições mensais das empresas para a Segurança Social continuaria a ser feito como actualmente, ou seja, com base nas remunerações pagas. Isto para não pôr em causa a estabilidade financeira da Segurança Social tão necessária a milhões de portugueses. No fim do ano, com base nas informações constantes das declarações entregues à administração fiscal, calculava-se então o VAB de cada empresa e aplicava-se uma taxa, por ex., de 10%. Se o valor assim calculado fosse superior à soma dos valores mensais entregues pela empresa durante o ano, ela entregaria a diferença à Segurança Social. Isto à semelhança do que já se verifica com o IRS, em que existem pagamentos mensais e no fim do ano faz-se o acerto de contas entre o contribuinte e a Administração Fiscal. Se a aplicação daquela taxa de 10% ao VAB desse um valor inferior ao pago durante o ano, seria o calculado durante o ano que se aplicaria. Tudo isto para assegurar um fluxo de receitas que nunca seria inferior ao actual, evitando-se desta forma criar quaisquer problemas financeiros.
Ao fim de um determinado período de tempo (3 a 5 anos), em que o novo sistema estivesse testado e consolidado, então introduzir-se-ia taxas de contribuições mais baixas para as empresas de trabalho intensivo, premiando e incentivando assim aquelas que criam emprego, e não aquelas que destroem emprego como sucede actualmente, e corrigindo assim também as desigualdades e injustiças que existem actualmente entre as próprias empresas (quem cria mais riqueza não é quem contribui mais para a Segurança Social, assim como as empresas que criam emprego são penalizadas, e as que destroem emprego têm um prémio que é pagar menos para a Segurança Social).
É evidente que um sistema desta natureza asseguraria receitas que contribuiriam fortemente para garantir a sustentabilidade financeira da Segurança Social, pois estas cresceriam de acordo com o aumento da riqueza do País e não apenas com o ritmo de crescimento das «Remunerações», que é normalmente inferior ao crescimento do PIB (riqueza anualmente criada no País).
O que têm exigido a CIP e outras associações patronais é a baixa da taxa de contribuição das empresas para a Segurança Social, ou seja, aquelas que já pagam menos, em termos de riqueza criada, passariam a pagar ainda menos, já que essa baixa beneficiaria de igual forma as empresas altamente lucrativas. Desta forma criar-se-iam mais problemas à Segurança Social que depois seriam naturalmente utilizadas para defender medidas visando reduzir ainda mais as prestações sociais pagos por aquela.
Para terminar, interessa transcrever o que consta da própria Conta Geral do Estado de 2003 do Governo sobre as reservas acumuladas da Segurança Social: «O Fundo de Estabilização da Segurança Social estava avaliado, no final de 2003, em 5,4 mil milhões de euros, o que equivale a 8,7 meses do montante gasto em pensões do subsistema previdencial (mais um mês do que um ano anterior) durante uma ano»(pág. 167).
Por outras palavras, as reservas acumuladas pela Segurança Social já correspondem, em valor, a 8,7 meses de pensões, e aumentaram em 2003 em mais um mês apesar de todos os ataques e dificuldades que o sistema público de Segurança Social está a enfrentar. É evidente que com as medidas que propomos certamente a sustentabilidade financeira futura da Segurança Social ficaria garantida. É necessário é querer tomar tais medidas tecnicamente exequíveis como se mostrou neste pequeno estudo de investigação.


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