Literatura

Camilo não é lamecha

Isabel Araújo Branco
Camilo Castelo Branco é, para muitos, sinónimo de escritor romântico lamecha. Engana-se quem assim pensa, provavelmente leitor exclusivo de «Amor de Perdição», na escola e anestesiado por críticos que apenas apontam as características do romantismo nas obras do autor. Engana-se, porque lendo Camilo sem preconceitos e ideias feitas é muito fácil encontrar, a par da temática romântica, a ironia do narrador sobre as desgraças amorosas das personagens, que muitas vezes chega a ser hilariante.
Se escarnece o narrador sobre os episódios narrados, porque não opta ele por outros, menos passionais, menos dramáticos, menos hiperbólicos? A pergunta é legítima e a resposta muito fácil de dar, passando do narrador para outra instância literária, o autor. É que o autor empírico, o homem de carne e osso, tinha contas para pagar e mulher e filhos para sustentar. Ou seja, precisava de vender textos para sobreviver. A família dependia disso. E, não escrevendo para a posteridade apreciar, Camilo tinha de produzir para os leitores contemporâneos, para os que podiam comprar as suas obras e, como tal, precisava de lhes agradar, satisfazer as suas necessidades literárias e dar-lhes a ler histórias de amores impossíveis e com final infeliz.
Dois dos autores mais apreciados na época eram Feliciano de Castilho e Soares dos Passos, esses sim empedernidamente lamechas. Talvez a composição mais popular deste último fosse «O Noivado do Sepulcro», poema sobre dois noivos mortos mas tão apaixonados que à noite, no cemitério, se levantam das suas tumbas e namoram ao luar. Este é o tipo de texto típico do segundo romantismo, que moldava as mentalidades e os gostos contemporâneos de Camilo. Como fugir a ele? Para quem precisava de vender livros, folhetins e artigos de jornal tal não é possível. A única saída é ironizar. Muitos não se apercebem disso. Talvez por isso tivesse vendido tanto no século XIX, talvez por isso hoje seja tido como o lamecha por excelência, quando devia ser visto sim como um profissional das letras.

O profissional das letras

«É necessário escrever, visto que há leitores», afirma Camilo Castelo Branco, em 1855. E não era só livros que escrevia. Camilo trabalhava regularmente em jornais e gazetas. Alexandre Cabral fala em «escritor público», na medida em que o autor escreve sobre todos os temas para que é solicitado, das letras à economia, passando pela política e pela vida social da burguesia. Trata-se de uma competência da escrita, um ofício de escrever de acordo com as necessidades da imprensa e, portanto, dos leitores.
Dependendo de quem compra as suas obras, «Camilo em si mesmo não era nada: é que é esse o seu modo, um modo de praticar o discurso que se define pela ausência de critérios sólidos, prévios e positivos que o governem», como refere Abel Barros Baptista em «Camilo e a Revolução Camiliana». Daí ser vazio em si mesmo e adaptar as concepções políticas, morais e estéticas às situações. Daí ser incapaz de se comprometer, seja com um tipo de narrativa, seja com os jornais onde trabalhava.
«O dinheiro esgotou-se, o editor espera novo original, a tipografia protesta contra a demora... Camilo serve-se das receitas consagradas, satisfaz os desejos do público, vai enchendo laudas com novas histórias de amor. Promete ao editor tantas páginas, para lhe pedir tantos mil réis; compila artigos dispersos, traduz obras populares, faz livros sensacionais, com títulos sensacionais, não pode meditar e trabalhar longamente cada novela. (...) Tem de sobrepor muitas vezes ao interesse da arte os interesses do leitor.» Esta descrição de Jacinto do Prado Coelho, em «Introdução ao Estudo da Novela Camiliana», ajuda a compreender a necessidade de Camilo de agradar a vários públicos, de forma simultânea ou alternada: pais de família e jovens rebeldes, espíritos reflexivos e leitores fúteis.
Em 1890, Camilo Castelo Branco fica totalmente cego. Não tendo forma alternativa de sustento, suicida-se com um tiro de pistola. Tinha 65 anos e escrito cerca de duas centenas de títulos.


Mais artigos de: Argumentos

Um homem subindo a pé

Ia eu a descer com cuidado a ladeira íngreme e cheia de curvas, carregando mais vezes no pedal do travão do que desejaria porque as voltas apertadas eram ameaças de despiste, quando me cruzei com ele. Não era velho, tinha seguramente menos idade que eu, mas era claro que a vida sempre o tratara tão mal, com tamanha...

Debates no Pavilhão Central

FórumSexta-feira- 21h30: «25 de Abril 30 anos – O Serviço Nacional de Saúde e a Segurança Social», com Bernardino Soares, Fernanda Mateus e Joaquim JudasSábado- 15h00: «25 Abril 30 anos – A luta dos trabalhadores e a sua organização», com Jerónimo de Sousa, João Torrinhas Paulo, Amável Alves- 18h00: «”Constituição...