O desastre como anestésico

Correia da Fonseca
É sabido: um telenoticiário bem animado, com o apresentador exibindo claros sinais de motivação, há-de abrir com a notícia de um grande desastre, de preferência a merecer a qualificação de catástrofe. Não é por mal, não é que as estações de televisão se caracterizem por um desvio sádico agravado ou que a mesma perversão seja dominante nas respectivas redacções. Pelo contrário: o que eles querem é distrair os seus espectadores, digamos que diverti-los no sentido amplo em que o divertimento não há-de esgotar-se na transmissão de programas de anedotas ou em novelas com enredos de pataco. Arriscando um pouco, embora não demasiado, direi que as aberturas de noticiários com gostosas notícias das catástrofes possíveis são a equivalente actual do clássico divertimento romano que consistia em deitar escravos aos leões, espectáculo muito apreciado e, ao que consta, garante da estabilidade do poder. Decorreram séculos de então para cá, progrediu-se, e agora não é preciso usar leões enquanto, por outro lado, não só continua a haver escravos como se multiplicaram as formas de escravatura. Assim, para que as populações vibrem com mortes e outras modalidades de tragédia, basta recorrer aos media em geral e, em especial, à TV, que permite assistir às desgraças muito ao vivo. Embora os psicólogos, e sobretudo os psicossociólogos , saibam muitíssimo mais do assunto que um cidadão comum ou mesmo abaixo do comum, não é necessária especialização para saber que a morte, o sangue olhado ou até apenas adivinhado, sofrimento, constituem um atraente espectáculo e, no mais amplo dos sentidos, divertem imenso, acorre muita gente a ver. Por sinal, é atracção com pergaminhos históricos nacionais: rezam as crónicas que os autos-de-fé da Santa Inquisição mobilizavam muitos espectadores, isto é, tinham interessantes audiências, para traduzir a realidade de então em linguagem moderna. Contudo, essa afluência não era rentabilizada no plano da publicidade, que nesse tempo não se usava, excepto, bem se sabe, a publicidade à Santa Madre e à sua eficácia terrena, que da outra nunca nada se apurou ao certo.

Os números terríveis

Voltemos, porém, ao facto registado no início destas linhas: a propensão e o gosto que os telenoticiários têm pelas grandes desgraças, se possível com muitas mortes, ocorridas algures no País ou no mundo. Dir-se-ia, a julgar pela prática, que é uma espécie de lei geral, muito abrangente. Mas não é. Apercebi-me disso muito claramente um dia destes, ao refolhear as páginas de um livro de Jean Ziegler, «Os Novo Senhores do Mundo»: escreve ele, citando um relatório da FAO relativo ao ano 2000: «Todos os dias, no planeta, cerca de 100.000 pessoas morrem de fome e das consequências imediatas da fome.» E mais adiante: «Todos os sete segundos, na Terra, uma criança abaixo dos dez anos morre de fome». Sem querer fazer humor imbecil com um tema terrível, dir-se-á que estas, sim, são enormes catástrofes, potenciadas pela circunstância de serem quotidianas, e que contudo os telenoticiários parecem não dar por elas. Acrescente-se mesmo que o destaque dado, dia após dia, a desastres tristíssimos, sem dúvida, mas de média dimensão se não ainda menores, tem o direito de «apagar» da sensibilidade, da generosidade das gentes o efeito das tragédias enormes e, o que não é menos importante, de bloquear alguma eventual curiosidade quanto às raízes, aos motivos, às circunstâncias de tamanhas desgraças.
Não tenho a menor intenção de insinuar a existência de uma cumplicidade consciente entre os telenoticiários e quem lhes traça os caminhos e as fomes assassinas e que quem as torna inevitáveis. Mas a questão é que as fomes existem e matam, tal como existem a furiosa devastação dos recursos naturais, o aprofundamento da fenda abissal entre os mais ricos e os mais pobres mesmo nas sociedade ditas avançadas, a marginalização dos velhos mesmo quanto aos cuidados médicos e em países cristãos e civilizados. Que as TV’s, mesmo sem silenciarem inteiramente estas e outras questões, as releguem para horários e canais secundários enquanto dão o mais tonitruante destaque aos relativamente pequenos desastres do dia, tem óbvias consequências anestésicas. Diz-se que tão ladrão é o que rouba como o que fica a vigiar. Dir-se-á, sem dúvida, que tão assassino é o que mata como o que se encarrega de distrair as atenções de quem poderia dar pelo crime.