A questão do ensino superior e das propinas
Poderá parecer redutor quando se fala do ensino superior falar da questão do aumento das propinas. No entanto ao longo dos últimos meses não é por acaso que os principais culpados pela situação de ruptura actual se centram nesta questão. De facto, desde o actual governo PSD/CDS até aos governos anteriores do PS ou do PSD, todos eles contribuíram decisivamente para a desresponsabilização do Estado neste sector acompanhado pelo aumento de propinas. E centram-se nesta questão porque é sem dúvida a forma mais fácil de se desresponsabilizarem e avançarem a passos largos para a privatização do ensino superior.
A luta ideológica que é necessária fazer neste campo é extremamente complexa, já que são utilizados pelos nossos adversários argumentos que aproveitam as contradições da sociedade portuguesa.
Inicialmente e devido à imposição dos numerus clausus, iniciou-se a elitização do ensino superior público. As dificuldades inerentes ao ingresso no ensino superior público levaram a que ao longo dos anos tenham sido os filhos das camadas sociais mais elevadas a ter lugar neste grau de ensino. Como se comprova em vários estudos do CNASES e outras instituições, as escolas do ensino superior particular e cooperativo são frequentadas por estudantes na sua maioria de camadas económicas mais frágeis, que desta forma têm dificuldades acrescidas para concluir os seus cursos.
Neste contexto surgiu no início da década de 90 a ideia do aumento de propinas no ensino superior público. A acompanhar esta ideia veio uma desresponsabilização em termos financeiros do Estado que levou à ruptura financeira de muitas faculdades, com o fim de credibilizar ainda mais esta necessidade.
Seis aspectos
Podemos dizer, então, que o aumento de propinas assenta sobre seis argumentos:
1.º «Vivemos num país pobre que não tem condições para suportar esta despesa, como se vê pelo facto de se estar numa situação de ruptura financeira em muitos estabelecimentos.»
O facto é desmentido diariamente pelo facto de um país pobre e sem recursos (como eles dizem), suportar centenas de milhões de contos à banca e aos grandes grupos capitalistas.
2.º «O ensino superior é frequentado por uma elite de “privilegiados”, pelo que não podem tirar os seus cursos à custa dos dinheiros do povo português.»
De facto, existem personalidades muito preocupadas com o facto de pagarem os cursos a uma elite, mas, no entanto, são essas mesmas personalidades que contribuíram de forma decisiva para a sua elitização (como se demonstrou atrás) e que, em vez de fazerem propostas concretas para que o ensino superior público deixe de ser elitizado, propõem uma medida que irá, por razões óbvias, elitizar ainda mais este grau de ensino: o aumento de propinas.
3.º «Quem termina o ensino superior tem maior facilidade de arranjar emprego e irá auferir no futuro salários mais elevados do que a generalidade da população.»
É um argumento que tem perdido alguma força na sociedade portuguesa, já que é do conhecimento generalizado que grande parte dos nossos licenciados se encontram no desemprego ou a trabalhar em áreas que nada têm a ver com o seu curso e onde muitas vezes são mais explorados que a generalidade dos trabalhadores com menos formação académica.
Que o digam os estagiários que dão a sua força de trabalho, os milhares de trabalhadores formados que aceitam quaisquer condições para poder melhorar o seu currículo na esperança de encontrar no futuro algo melhor, os milhares de bolseiros que têm muito mais responsabilidades do que o salário que auferem, a quem não se aplicam os direitos da maioria do trabalhadores e que adiam durante muitos anos o desemprego inevitável.
4.º «Se um estudante do particular e cooperativo paga dezenas de contos de propinas por mês, então o do ensino superior público também o deverá fazer por uma questão de justiça social.»
O problema não está no facto de os estudantes e as suas famílias não pagarem propinas de dezenas de contos mensais no ensino superior público, está sim no facto de o sistema ter permitido (por razões económicas facilmente compreensíveis para os donos das escolas privadas) que o ensino superior particular e cooperativo se tenha tornado numa solução obrigatória para dezenas de milhares de estudantes e não uma opção.
5.º «Em alguns países da Europa pagam-se propinas muito mais elevadas do que no nosso país.»
De facto, existem também países na Europa onde as propinas são mais baixas do que em Portugal. Nos países onde as propinas são mais elevadas regista-se também uma elitização muito mais elevada do que em Portugal e uma fronteira muito mais clara entre a formação das camadas económicas mais elevadas e as mais baixas.
6.º «A responsabilização das instituições é fundamental para acabar com o despesismo interno, bem como para o angariar de mais receitas próprias que permitam aumentar a qualidade do ensino.»
Ao longo dos anos de vigência da lei de financiamento, esta nunca foi respeitada. Mais de 90 por cento do financiamento do ensino superior público serve para pagar salários, quando, segundo a lei, esse valor deveria ser de 80 por cento. As contas são fáceis de fazer: se uma instituição deveria receber 100 para pagar 80 em ordenados, se só receber 90 então tem de pagar na mesma 80 em ordenados, pelo que gasta quase 90 por cento em ordenados. Virem acusar as instituições de despesismo nestas condições financeiras é como se compreende uma tremenda contradição.
Quanto ao aumento das receitas próprias, estas têm vindo de duas questões no fundamental: do dinheiro das propinas, que ao contrário do que estava escrito na lei não serviram para aumentar a qualidade do ensino, mas sim para colmatar os buracos no orçamento; e os contratos com entidades privadas para a prossecução de uma série de serviços.
Sendo um facto que as instituições se encontram em dificuldades, é natural que necessitem de verbas como de pão para a boca. Assim, as entidades privadas disfrutam de uma série de regalias junto dos estudantes (existem contratos com bancos onde os alunos dessa instituição têm de obrigatoriamente ter um cartão desse banco, por exemplo) em troca da entrega de uma determinada quantia à instituição. Sendo uma necessidade cada vez maior das universidades, essas entidades encontram espaço para fazer valer os seus interesses, obrigando os organismos de gestão das instituições a tomarem decisões contra o próprio interesse das instituições de forma a que estas possam manter o financiamento de que necessitam.
No futuro e tendo em conta esta linha de ataque ao ensino superior público, haverá entidades privadas com um poder tal que poderão ser parceiros sem os quais as universidades não podem tomar uma decisão. Esta conclusão tem de nos levar a reflectir sobre outra questão: a autonomia universitária.
Autonomia universitária
A autonomia universitária consagra entre muitos outros aspectos a forma de gestão das universidades (feita de forma democrática por estudantes, professores e funcionários não docentes) e consagra a independência das universidades face aos governos permitindo um desenvolvimento independente de outros interesses que não os definidos pelas instituições.
Esta lei deveria permitir às instituições desenvolver a sua actividade de forma livre e independente, no entanto essa não tem sido a realidade. Embora esta lei exista e seja aplicada, o sub-financiamento crónico a que as instituições têm sido votadas implicam uma dependência muito negativa dos governos da ocasião.
O que se espera de futuro é algo ainda mais grave. Se acontecerem os cortes previstos para este ano, as universidades terão de obrigatoriamente ceder ainda mais aos interesses dos privados, nomeadamente na sua filosofia de funcionamento. Ficarão dependentes de tal forma que as decisões a serem tomadas terão de ter em conta essa nova realidade e serão direccionadas para alimentar esses interesses que serão em muitos casos contraditórios com os interesses das instituições e do País. No fundo, todo este aparelho de criação intelectual deixará de estar ao serviço do povo português, mas sim dos interesses dos grupos económicos que dominarem as universidades.
A formação técnica e intelectual de um povo é um passo fundamental para o aumento da produtividade de um país. Mesmo com a melhor tecnologia se os trabalhadores não tiverem formação, a produtividade não aumenta e continuaremos dependentes de outros para o desenvolvimento tecnológico do País. Somos um dos países da União Europeia com menor formação superior da população. No entanto, existem milhares de desempregados com formação superior em Portugal.
A direita utiliza este facto para reforçar a ideia de que há formados a mais e se deve restringir o investimento. De facto, tenta-se moldar o ensino superior às necessidades do mercado de trabalho do País e faz-se disso um dogma. Importa, no entanto, referir que infelizmente as necessidades do mercado de trabalho do País não são coincidentes com os interesses do País. Ou seja, quem define o mercado de trabalho não são os representantes do povo, mas sim os grupos económicos que lhes interessa manter uma situação de precaridade e de baixo desenvolvimento económico, pelo que quem tem qualificações a mais é posto de lado mais rapidamente.
É esta a razão pela qual a maioria dos alunos de doutoramento formados nas nossas universidades se vêem obrigados a irem para o estrangeiro, onde lhes é possibilitada a continuidade do seu trabalho. No fundo, temos quadros formados no nosso país, com o dinheiro do povo português que servem os grupos económicos onde mais lhes interessa, por falta de uma política de desenvolvimento económico que tenha em conta os interesses do povo português.
Inicialmente e devido à imposição dos numerus clausus, iniciou-se a elitização do ensino superior público. As dificuldades inerentes ao ingresso no ensino superior público levaram a que ao longo dos anos tenham sido os filhos das camadas sociais mais elevadas a ter lugar neste grau de ensino. Como se comprova em vários estudos do CNASES e outras instituições, as escolas do ensino superior particular e cooperativo são frequentadas por estudantes na sua maioria de camadas económicas mais frágeis, que desta forma têm dificuldades acrescidas para concluir os seus cursos.
Neste contexto surgiu no início da década de 90 a ideia do aumento de propinas no ensino superior público. A acompanhar esta ideia veio uma desresponsabilização em termos financeiros do Estado que levou à ruptura financeira de muitas faculdades, com o fim de credibilizar ainda mais esta necessidade.
Seis aspectos
Podemos dizer, então, que o aumento de propinas assenta sobre seis argumentos:
1.º «Vivemos num país pobre que não tem condições para suportar esta despesa, como se vê pelo facto de se estar numa situação de ruptura financeira em muitos estabelecimentos.»
O facto é desmentido diariamente pelo facto de um país pobre e sem recursos (como eles dizem), suportar centenas de milhões de contos à banca e aos grandes grupos capitalistas.
2.º «O ensino superior é frequentado por uma elite de “privilegiados”, pelo que não podem tirar os seus cursos à custa dos dinheiros do povo português.»
De facto, existem personalidades muito preocupadas com o facto de pagarem os cursos a uma elite, mas, no entanto, são essas mesmas personalidades que contribuíram de forma decisiva para a sua elitização (como se demonstrou atrás) e que, em vez de fazerem propostas concretas para que o ensino superior público deixe de ser elitizado, propõem uma medida que irá, por razões óbvias, elitizar ainda mais este grau de ensino: o aumento de propinas.
3.º «Quem termina o ensino superior tem maior facilidade de arranjar emprego e irá auferir no futuro salários mais elevados do que a generalidade da população.»
É um argumento que tem perdido alguma força na sociedade portuguesa, já que é do conhecimento generalizado que grande parte dos nossos licenciados se encontram no desemprego ou a trabalhar em áreas que nada têm a ver com o seu curso e onde muitas vezes são mais explorados que a generalidade dos trabalhadores com menos formação académica.
Que o digam os estagiários que dão a sua força de trabalho, os milhares de trabalhadores formados que aceitam quaisquer condições para poder melhorar o seu currículo na esperança de encontrar no futuro algo melhor, os milhares de bolseiros que têm muito mais responsabilidades do que o salário que auferem, a quem não se aplicam os direitos da maioria do trabalhadores e que adiam durante muitos anos o desemprego inevitável.
4.º «Se um estudante do particular e cooperativo paga dezenas de contos de propinas por mês, então o do ensino superior público também o deverá fazer por uma questão de justiça social.»
O problema não está no facto de os estudantes e as suas famílias não pagarem propinas de dezenas de contos mensais no ensino superior público, está sim no facto de o sistema ter permitido (por razões económicas facilmente compreensíveis para os donos das escolas privadas) que o ensino superior particular e cooperativo se tenha tornado numa solução obrigatória para dezenas de milhares de estudantes e não uma opção.
5.º «Em alguns países da Europa pagam-se propinas muito mais elevadas do que no nosso país.»
De facto, existem também países na Europa onde as propinas são mais baixas do que em Portugal. Nos países onde as propinas são mais elevadas regista-se também uma elitização muito mais elevada do que em Portugal e uma fronteira muito mais clara entre a formação das camadas económicas mais elevadas e as mais baixas.
6.º «A responsabilização das instituições é fundamental para acabar com o despesismo interno, bem como para o angariar de mais receitas próprias que permitam aumentar a qualidade do ensino.»
Ao longo dos anos de vigência da lei de financiamento, esta nunca foi respeitada. Mais de 90 por cento do financiamento do ensino superior público serve para pagar salários, quando, segundo a lei, esse valor deveria ser de 80 por cento. As contas são fáceis de fazer: se uma instituição deveria receber 100 para pagar 80 em ordenados, se só receber 90 então tem de pagar na mesma 80 em ordenados, pelo que gasta quase 90 por cento em ordenados. Virem acusar as instituições de despesismo nestas condições financeiras é como se compreende uma tremenda contradição.
Quanto ao aumento das receitas próprias, estas têm vindo de duas questões no fundamental: do dinheiro das propinas, que ao contrário do que estava escrito na lei não serviram para aumentar a qualidade do ensino, mas sim para colmatar os buracos no orçamento; e os contratos com entidades privadas para a prossecução de uma série de serviços.
Sendo um facto que as instituições se encontram em dificuldades, é natural que necessitem de verbas como de pão para a boca. Assim, as entidades privadas disfrutam de uma série de regalias junto dos estudantes (existem contratos com bancos onde os alunos dessa instituição têm de obrigatoriamente ter um cartão desse banco, por exemplo) em troca da entrega de uma determinada quantia à instituição. Sendo uma necessidade cada vez maior das universidades, essas entidades encontram espaço para fazer valer os seus interesses, obrigando os organismos de gestão das instituições a tomarem decisões contra o próprio interesse das instituições de forma a que estas possam manter o financiamento de que necessitam.
No futuro e tendo em conta esta linha de ataque ao ensino superior público, haverá entidades privadas com um poder tal que poderão ser parceiros sem os quais as universidades não podem tomar uma decisão. Esta conclusão tem de nos levar a reflectir sobre outra questão: a autonomia universitária.
Autonomia universitária
A autonomia universitária consagra entre muitos outros aspectos a forma de gestão das universidades (feita de forma democrática por estudantes, professores e funcionários não docentes) e consagra a independência das universidades face aos governos permitindo um desenvolvimento independente de outros interesses que não os definidos pelas instituições.
Esta lei deveria permitir às instituições desenvolver a sua actividade de forma livre e independente, no entanto essa não tem sido a realidade. Embora esta lei exista e seja aplicada, o sub-financiamento crónico a que as instituições têm sido votadas implicam uma dependência muito negativa dos governos da ocasião.
O que se espera de futuro é algo ainda mais grave. Se acontecerem os cortes previstos para este ano, as universidades terão de obrigatoriamente ceder ainda mais aos interesses dos privados, nomeadamente na sua filosofia de funcionamento. Ficarão dependentes de tal forma que as decisões a serem tomadas terão de ter em conta essa nova realidade e serão direccionadas para alimentar esses interesses que serão em muitos casos contraditórios com os interesses das instituições e do País. No fundo, todo este aparelho de criação intelectual deixará de estar ao serviço do povo português, mas sim dos interesses dos grupos económicos que dominarem as universidades.
A formação técnica e intelectual de um povo é um passo fundamental para o aumento da produtividade de um país. Mesmo com a melhor tecnologia se os trabalhadores não tiverem formação, a produtividade não aumenta e continuaremos dependentes de outros para o desenvolvimento tecnológico do País. Somos um dos países da União Europeia com menor formação superior da população. No entanto, existem milhares de desempregados com formação superior em Portugal.
A direita utiliza este facto para reforçar a ideia de que há formados a mais e se deve restringir o investimento. De facto, tenta-se moldar o ensino superior às necessidades do mercado de trabalho do País e faz-se disso um dogma. Importa, no entanto, referir que infelizmente as necessidades do mercado de trabalho do País não são coincidentes com os interesses do País. Ou seja, quem define o mercado de trabalho não são os representantes do povo, mas sim os grupos económicos que lhes interessa manter uma situação de precaridade e de baixo desenvolvimento económico, pelo que quem tem qualificações a mais é posto de lado mais rapidamente.
É esta a razão pela qual a maioria dos alunos de doutoramento formados nas nossas universidades se vêem obrigados a irem para o estrangeiro, onde lhes é possibilitada a continuidade do seu trabalho. No fundo, temos quadros formados no nosso país, com o dinheiro do povo português que servem os grupos económicos onde mais lhes interessa, por falta de uma política de desenvolvimento económico que tenha em conta os interesses do povo português.