Aqueles símbolos

Correia da Fonseca
Depois da decepção, ficaram os cachecóis e as bandeiras, de mistura com os restos de um ardor patriótico, dizem muitos que desproporcionado porque, em boa verdade, o motivo não valeria tanto e, de resto, pelo muito ardor havido é que se pagou o tão doloroso preço final. Parece claro que houve um excessivo investimento de esperança e também que esse excesso foi estimulado por uma estratégia de motivação política ou comercialona, conforme os casos. No somatório de expectativas criadas, sobretudo quando aconteceu saírem reforçados dos jogos com as equipas espanhola, inglesa e checa, alguma coisa me lembrou a estória da Mofina Mendes e do seu pote de leite. A verdade é que quase todos nós, embora uns mais que outros, chorámos o leite derramado depois de quebrado o pote. Creio mesmo que a asa da tristeza tocou até os que, cheios de razão, se haviam indignado perante a instrumentalização do futebol como anestésico de um povo inteiro e do sentido patriótico para uma causa que é forçoso reconhecer como menor, por muito que apreciemos as incursões do Figo e a garra do Rui Costa.
Ficaram, pois, os cachecóis e as bandeiras, mais o ardor patriótico, depois da festa acabada: e o «Portugal no Coração» meteu-se a cogitar o que poderá ser feito com essas riquezas remanescentes (a que se junta o Hino Nacional, o mesmo que os antifascistas cantavam a 5 de Outubro diante das cargas da polícia). A ideia foi simpática, como aliás é o programa no quadro da sua desambiciosa mediania quotidiana, mas o desenvolvimento da intenção foi um pouco pior que medíocre. Calcule-se que se chegou ao ponto de um sujeito preconizar o feliz regresso à velha e ligeiramente repugnante trilogia de Salazar, «Futebol, Fátima e Fado», sem que ninguém lhe estranhasse o impudor ou, na alternativa, a inconsciência. Houve um momento em que cheguei a recear que à sombra das bandeiras ou no desfraldar dos cachecóis se recomendasse o retorno de uma pidezinha adequadamente branqueada pelo regime democrático, mas felizmente não aconteceu nada disso. O que, por um lado, é abonatório do «Portugal no Coração» e, por outro lado, pode significar que a nossa democracia ainda está em fase de «evolução».

Mais que um cenário, uma gente

Entretanto, é preciso dizer que, no fundamental, «Portugal no Coração» estava certo: embora a partir de um torneio de futebol, que como talvez alguns lembrem era para ser um desporto, emergiu um vivo e generalizado sentido que, há falta de melhor, podemos designar como patriótico, embora se saiba muito bem que a palavra, aliás excelente, está há muito tempo conspurcada por usos reles, quando não ignóbeis. Ora, ficou provado que a generalidade dos portugueses, se não a sua totalidade, se emociona com a visão da bandeira nacional que por sinal é da República, sente o apelo contido num agitar verde-rubro, é capaz de experimentar um frémito ao ouvir os contudo muito conhecidos acordes de «A Portuguesa». E descobre então com uma intensidade porventura surpreendente que tem amor pelo seu País. Chegados aqui, porém, é preciso ter cuidado, saber ao certo o chão que se pisa, perceber o que está dentro das palavras. É que o País que nos suscita o amor, a solidariedade, porventura o orgulho de lhe pertencermos e de nos pertencer ele a nós, é mais que o belo cenário de montes cobertos de arvoredo (quando não arde) e de rios que serpenteiam verde-azuis (quando não acastanhados pelas poluições): é a gente que o habita e sem a qual não há País, mas talvez apenas sítio. E acontece que essa gente, sem a qual não há Portugal e que é de facto o País, não acabou no passado domingo quando findou o jogo contra a equipa grega: está aí, viva; somos nós próprios e os que se cruzam connosco, os que conhecemos e os que apenas sabemos existirem. Está aí e debate-se com problemas, é vítima de abusos e de violências, precisa de que lhe seja assegurado não já um título de campeão mas, talvez mais simplesmente, um caminho para o futuro em justiça. Não é mais um jogo, mas é sem dúvida um desafio. E, para que seja ganho, são precisos os cachecóis, as bandeiras, o hino, a fraternidade que se abraça nas ruas; pelo que, já se vê, «Portugal no Coração» estava cheio de razão: é preciso continuar a usar aqueles símbolos mesmo com o Euro 2004 terminado. Aqueles símbolos e a força que eles nos despertam.


Mais artigos de: Argumentos

Valor de troca no negócio futebolístico

Quando aproveitaste (refiro-me, claro, ao autor destas linhas), dizia, quando aproveitaste, há algum tempo, a oportunidade da mediática operação «apito dourado» para escrever sobre a natureza – natu elaboraste ter reza em termos de valor de troca, bem entendido – do negócio do futebol, o texto que então á ficado, no...

Convívio e debate na Atalaia

Numa iniciativa promovida pelo Grupo de Trabalho do PCP sobre as Novas Tecnologias de Informação realizou-se, no passado sábado, na Quinta da Atalaia, uma tertúlia com conversa informal e muito participada pela vintena de camaradas presentes.