Pela inclusão social

Modesto Navarro
Quem gosta muito de Lisboa sabe, nomeadamente desde a década de 1960/70, que os filhos dos seus habitantes, das camadas mais populares e até médias, têm abandonado a cidade. É uma dor de alma vê-los partir, para habitarem na periferia, na área metropolitana, onde alguns concelhos que eram desorganizados e inóspitos se vêm afirmando e elevando a sua qualidade de vida, num quotidiano interessante que, em muitos aspectos, já ultrapassa Lisboa, em participação, juventude e criatividade.
O sistema é violento e desagregador para Lisboa, desde logo na competição instalada e na política de solos. Esta cidade perde assim, dia após dia, o que de melhor poderia ter, em gente nova, identidade e vida própria. A lógica do lucro, da especulação e da reserva de locais de habitação para as classes mais elevadas foi contrariada, de certo modo, na construção de habitação social e na realização de alguns programas habitacionais para os mais jovens, na última década, mas a situação que podemos observar leva-nos a concluir que Lisboa perdeu e perde tecidos sociais que eram fundamentais e não se renovam, num processo de exclusão que é violento e se apresenta já como inexorável.
A par disso, nas duas últimas décadas, os sectores produtivos, aqueles que verdadeiramente criavam riqueza, foram destruídos e dezenas de milhar de postos de trabalho desapareceram, nos bairros e freguesias que eram historicamente operários e populares e noutras zonas da cidade.
O modelo europeu que nos foi imposto e que foi aceite por governos e responsáveis políticos tornou Portugal mais periférico e pouco ou nada influente nos destinos desta Europa que se alarga e cria maiores problemas e vicissitudes para quem não sabe, ou não quer, defender-se e impor-se.
É a lógica do sistema no seu explendor, com repercussões graves no seio das famílias, que se desagregam, que são cirurgicamente destruídas, às vezes à mistura com discursos hipócritas, famílias esvaídas no desemprego que cresce, na casa que perdem por já não poderem pagar as prestações ao Banco, na instabilização da vida a todos os níveis, na agressividade e na violência que nos menorizam e submergem.
Assim se instala a apatia, a desilusão, o desinteresse pelas questões essenciais, numa progressão a que a comunicação social televisiva dá alento, ao mesmo tempo que se alimenta da ignorância, da mentira, da corrupção, da falta de ética e de valores que desaparecem para serem substituídos por um vazio identitário que terá, já está a ter, custos brutais.
Os baixos salários, onde ainda existem, a enorme e gritante ausência de práticas culturais e um quotidiano de isolamento e de pobreza fazem o resto, ou seja, levam-nos a situações graves e assustadoras como as que hoje conhecemos e é necessário analisar.

Um trabalho a continuar

Convém aqui dizer que na cidade de Lisboa se fez ontem, e é necessário continuar a fazer, muito trabalho nas áreas sociais, educativas e culturais, em ligação entre os órgãos municipais, Câmara e Juntas de Freguesia, e instituições profundamente dedicadas a minorar as consequências de políticas brutais, de exclusão e de destruição do que é essencial para as nossas vidas, o trabalho, a habitação, a saúde, a educação e a cultura. Desde há muito tempo que o poder local de todo o país vai muito para além do que é legitimamente da sua responsabilidade, sem contrapartidas financeiras ou outras, por parte do poder central. E mais atribuições aí virão, para o sufocar e impedir de desenvolver harmoniosamente as suas próprias actividades em prol das populações. Sabemos ainda que só raramente o poder central, os poderes e os governos, se disponibilizaram e disponibilizam para analisarem connosco estas tão duras realidades que, em Lisboa, resultam também, em parte, daquilo que, já no início da década de 1990/2000, foi designado como «os custos da capitalidade», em propostas e exigências ao poder central que ficaram sem resposta.
Não tem havido uma análise séria das situações sociais em que a cidade se vê submersa, desde a falta do que é essencial às famílias para a sobrevivência diária, às situações envergonhadas ou evidentes de ausência de tudo e da presença dolorosa da fome, da prostituição, da situação penosa dos imigrantes, da toxicodependência avassaladora, dos portadores de deficiência sem apoios básicos, de quotidianos que se agravam, por exemplo na ausência de transportes públicos, e que proliferam até em áreas e vidas que pareciam estar longe dessas ameaças.
Hoje, a humanidade atinge níveis de investigação científica e de produção de riqueza tão elevados e, afinal, as diferenças acentuam-se e cava-se ainda um maior predomínio do poder económico sobre o poder político, o que subjuga mais os legítimos direitos e interesses dos trabalhadores e das maiorias do país a pequenos grupos que, ainda por cima, parecem não ter rosto e têm poderes imparáveis e monstruosos que nem sequer adivinhamos, por exemplo na alta corrupção e nas áreas do tráfico de armas e de droga.
É nesta situação de regressões evidentes e de exclusões, às vezes tão óbvias ou tão subtis que já nem as analisamos e combatemos, que estamos profundamente interessados em conhecer melhor as realidades más e as boas notícias de Lisboa, pela voz e pelo testemunho das instituições e dos munícipes, nesta preocupação de entender melhor o que se passa, de apreeender e enaltecer o que é feito nas diversas áreas de combate à exclusão e a todos os problemas sociais que nos afligem.

Caminhos de participação

Sabemos hoje, duramente o sabemos, que não é apenas com uma visão assistencialista e bem intencionada que se resolvem os graves problemas e as origens profundas da fome, do desemprego, da falta de habitação e de condições básicas para uma vida aceitável, desejável e integradora. Convirá portanto avançar não só na caracterização das situações, mas também, e talvez essencialmente, na definição e descoberta de caminhos de participação e de envolvimento de todos nós, poder local de Lisboa e instituições da cidade, poderes da área metropolitana e poder central, para que possam ser levados a cabo projectos de reestruturação e de reorientação do que é essencial nas áreas do trabalho, da revitalização dos tecidos produtivos na cidade, agora tecnologicamente avançados, da habitação, da escola, da saúde e da cultura, em todos os sectores que são essenciais para um reordenamento económico e social que seja cabal e eficaz.
É pedir muito? Claro que é. Talvez, até, seja lirismo apontar estes caminhos, contra tantas contradições e impedimentos. Mas também sabemos, dolorosamente o sabemos, que não é com panaceias mais ou menos conhecidas que se irá resolver o que é essencial para todos nós e o que tem directamente a ver com o quotidiano daqueles que sofrem, nos bairros e nas freguesias da cidade. É com projectos e programas determinados, que visem a resolução de carências e exclusões e que integrem objectivos que têm a ver com a identidade e o futuro de Lisboa e de todas as cidades e concelhos da área metropolitana. É preciso definir e impulsionar o que será fundamental para um caminho de bem-estar e de independência de um país e de um povo que merece viver melhor e trabalhar, ter direitos e deveres em consonância com o que é humano e profundamente necessário à felicidade e ao gosto de existir.
Não podemos continuar a perder o emprego e a habitação, como acontece hoje em dia tão facilmente, em processos violentos e rapaces, que querem transformar os portugueses em novos «beduínos», a irem cada vez mais de porta em porta, de local em local, à procura de trabalho e de casa. E, aqui, convirá estar atento à nova lei de arrendamento urbano que aí vem, nas suas implicações e consequências.
É preciso trazer de novo as pessoas à rua, ao convívio, à participação, à reconquista da dignidade dos mais novos e dos mais velhos, que estão sós e cada vez mais excluídos, recriando essa vontade de afastar o vazio e a solidão, fazendo de Lisboa uma cidade humanizada e integradora. Para isso precisamos de unir ainda mais esforços e vontades, de erguer projectos que sejam límpidos e capazes de transformar esta realidade já tão difícil, que é, ao mesmo tempo, desafiadora de vontades, do que nos é mais legítimo e íntimo, dentro de nós próprios e lá fora, na vida que continua e que precisamos de fazer ainda melhor, sempre mais avançada, solidária, generosa e criadora.


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