A foto viciada

Correia da Fonseca
Muito se falou na TV, embora não só nela, do 60.º aniversário do desembarque na Normandia, isto é, da criação enfim da Segunda Frente que então vinha desde há muito a ser reclamada pela União Soviética, desde Junho de 41 a suportar sozinha todo o peso do poder militar alemão. Muito se falou, pois, e muito se comemorou a efeméride como aliás bem se justificava, mas não tanto para celebrar o início do capítulo último da agonia nazi como para evocar, muitas vezes com expressões de onde a gratidão emergia aos borbotões, a generalidade norte-americana que se dera ao trabalho de atravessar o Atlântico para «salvar a Europa». Quanto aos anos de espera a que os soviéticos tinham sidos submetidos, dizem não poucos que para dar tempo a que Hitler consumasse o seu velho sonho de destruir a URSS, não vi nem ouvi uma única palavra. Vi e ouvi, isso sim, que W. Bush aproveitou a oportunidade para se passear por cá exibindo uma imaginária auréola de salvador, ou de legítimo herdeiro de salvadores desinteressados. Mas não sei de quem tenha tido oportunidade de dizer, na TV ou fora dela, que a estória não estava a ser muito bem contada.
A questão é que, para lá do respeito e da homenagem devidos aos soldados norte-americanos que tombaram a 6 de Maio de 44 e ao longo de um ano mais, o que a intervenção USA na Europa veio fazer não foi apenas, nem talvez principalmente, libertar a Europa ocupada e abater a besta nazi. Quando eles chegaram à Normandia já Hitler tinha sido batido em Stalinegrado há mais de um ano, já o Exército Vermelho avançava em direcção a Berlim, já o mito da invencibilidade da Wermacht estava em fanicos. Seria um erro e um acto de enorme má-fé insinuar que a abertura da Segunda Frente não foi um contributo decisivo para acelerar a derrota nazi, mas é praticamente certo que mesmo sem ela a Alemanha seria vencida. Nesse caso, o que aconteceria provavelmente é que os soviéticos não se deteriam em Berlim e chegariam ao Reno, que a sua influência se derramaria pela Europa inteira (sem exclusão da Espanha e de Portugal, onde os regimes fascistas não teriam podido sobreviver cerca de três décadas ao fim da Guerra), que seria diferente a História do pós-guerra. Assim, o que fundamentalmente os norte-americanos vieram trazer à Europa foi travar o avanço comunista. Para tanto, bateram os alemães e avançaram Alemanha adentro com toda a rapidez possível. Ainda bem que bateram o que restava do poder militar hitleriano, ainda bem que aceleraram o fim da guerra, mas não se acredite que o fizeram por puro espírito de solidariedade para com os europeus ocupados e oprimidos.

Lembrar «a guerra inútil»

É frequente depararmos com a denúncia de que o poder soviético no tempo de José Estaline mandou retirar de fotos históricas posteriores à Revolução de Outubro a imagem de Trotzky, o que os media ocidentais têm andado a fazer neste ano de 2004 tem sido retirar a União Soviética e os milhões de soviéticos que morreram entre 41 e 45 da «fotografia» da derrota alemã. Nem sequer parece ser muito audacioso dizer que sem a presença dos soviéticos na luta os norte-americanos não atravessariam o Atlântico, nem os ingleses atravessariam o Canal, para destruírem a Alemanha nazi: haviam de encontrar meio de negociar com Hitler um acordo «aceitável para ambas as partes» que o virasse, livre de preocupações a Ocidente, contra a URSS. Aliás, seria a consecução do projecto dos anos de 38-39, confirmados pelo que escreveu ao tempo o embaixador Davies, representante dos Estados Unidos em Moscovo. E não nos esqueçamos de que o próprio Winston Churchill, referindo-se um dia ao conflito de 39-45, lhe chamou «a guerra inútil». Inútil porque no fim dela a União Soviética saiu politicamente reforçada em vez de destruída. Inútil porque não era prioritário salvar a Europa no nazifascismo, mas sim do comunismo que em 45 afinal se reforçara como objectivo desejável e desejado para o futuro do mundo.
Temos, pois, que estas comemorações do 60.º aniversário do desembarque na Normandia foram mais um caso de falsificação da História, neste caso por omissão de elementos fundamentais para o bom entendimento do quadro político-militar de 1944 e dos que eles significavam. Não é nada que surpreenda, mas é de crer que a batota, servida pelo enorme poder dos media ocidentais, seja eficaz. Pelo que é importante, também neste aspecto, fazer o que continua a ser preciso em todos os sectores: resistir. E contra-atacar.


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