«Deixem-nos saber!»

Correia da Fonseca
As crianças como vítimas das guerras, e vítimas por mais de um modo (incluindo a sua participação como soldados) foi o tema do espectáculo que preencheu a mais substancial parte do serão de sábado passado. O espectáculo era uma iniciativa da Cruz Vermelha e tinha um título, «Deixem-nos brincar». Não direi que o título era inadequado, mas é imperativo lembrar que não são apenas as guerras que impedem as crianças de brincar. Por exemplo, a miséria extrema que assola países ou regiões por onde não passou nenhuma guerra, excepto a peculiar guerra que países ricos mantêm contra países pobres devastando-os não com bombas mas sim com voracíssimas explorações económicas. Ou, numa modalidade menos cruel do que afinal é a mesma guerra, a pobreza que de facto impõe muitas vezes o trabalho infantil, embora os hipócritas finjam não perceber que é assim e queiram reduzir a questão às dimensões limitadas de uma «questão cultural». De qualquer modo, o espectáculo foi uma viva denúncia das guerras da sua profunda ilegitimidade, e ao longo do programa foram transmitidas algumas das imagens pungentes a que infelizmente as TV’s já nos habituaram. «Foi positivo», como parece que se tornou costume dizer, as mais das vezes quando não se quer dizer muito mais. Essas imagens alternavam com informações prestadas por Catarina Furtado, que apresentou o programa, com declarações dos presidentes da Cruz Vermelha Internacional e da Cruz Vermelha Portuguesa e com cantigas. Cantigas mesmo, não em sentido figurado, e cantigas de qualidade. Chegados aqui, dir-se-á que tudo foi bom e que este não pode ser mais que um apontamento de aplauso. É quase assim. Quase. Mas não completamente.

A questão é que me impressiona um poucochinho que programas de denúncia das guerras ou de algumas das suas terríveis consequências surjam nas TV’s, e não apenas nelas, como programas fundamentalmente musicais em que as informações surgem um pouco como complementos, se não como condimentos. Bem sei, naturalmente, que há para este método, chamemos-lhe método, uma justificação: a de que desse modo a mensagem chega a mais amplas audiências, assim se presumindo que as cantigas estão ali como excipiente para que um destinatário difícil ou até recalcitrante aceite ouvir as palavras que é preciso proferir e olhar as imagens que lembram o que é preciso lembrar. Mas fica-me, com razão ou sem ela, o sentimento de que nesta explicação há qualquer coisa de feio, quase de deprimente, além da suspeita que me azeda o estômago porque está vinculada à convicção de que até ali existem interesses comerciais, estratégias de «marketing», tentáculos de um mundo dominante mas repugnante que tem toda a responsabilidade nos crimes e nas catástrofes que infectam o planeta e chegam a abalar a esperança. Com a efectiva eliminação da infância.

Um Patronato das Ideias

Porém, todas estas observações, certas ou tontas, têm a ver com uma questão mais ampla: a ausência nos canais de larga audiência de programas que consubstanciem uma permanente denúncia e condenação das guerras, uma sistemática intervenção mediática em favor da Paz. Dir-se-ia que para a gestão desses canais, ditos generalistas, a questão da Paz e da Guerra é não apenas secundária como de um interesse tão supostamente especializado que não tem lugar num canal de amplo cardápio. Dir-se-á que esta pretensa explicação é improvável e quase absurda. Também acho, mas tenho outra melhor. Trata-se da que não se alheia do facto de os conteúdos dos grandes canais de TV um pouco por todo o mundo, com óbvios reflexos entre nós, estarem condicionados, controlados, por grandes grupos económicos e financeiros para quem os media são, além de um negócio, um instrumento que lhes garante o controlo do que as populações sabem e pensam. Para esse grande Patronato das Ideias à escala planetária, é claro que não convém que se reflicta muito acerca das causas das guerras, das misérias, das infâncias estraçalhadas, muito mais importando que as gentes se distraiam, isto é, se anestesiem. Quando muito, que as indignações surjam diluídas em excipientes musicais. E poucas vezes. Neste quadro, vimos «Deixem-nos Brincar». Com um pouco de sorte, daqui a uns meses virá um outro programa que nos reforce a rejeição das guerras. E, até lá, resta-nos ficarmos a repetir: «-Deixem-nos saber!». Falando das causas, não apenas dos efeitos.


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