Baixa

José Emilio Pires – Amadora

Francisco Mota
Tu, Zé, que trabalhaste tantos anos na Baixa, és o companheiro ideal para me acompanhar nesta volta aos sítios para onde tantas vezes olhamos e que tão poucas vezes vemos. Digo vemos, com olhos de ver.
Quando saíamos de Estação do Rossio, logo ali na esquina uma montra provocava com montes de panados, rissóis, croquetes, pastéis de bacalhau, e, in illo tempore, passarinhos fritos. Era uma moda fritar todas estas coisas aos olhos dos eventuais clientes que passavam na rua, para provar a limpeza e qualidade do produto. Agora lembrei-me do grande gastrónomo galego Julio Camba que nos anos 20 perguntava: «se se fritam passarinhos porque é que não se fritam também ministros que são mais nocivos?». Não vou entrar aqui em considerações sobre a quantidade de óleo necessário para fritar ou o sabor final de cada um dos produtos e vou deixar o assunto no plano ecológico: é proibido comer passarinhos e ministros. Pronto, e mudamos de assunto.
Subimos um pouco e passamos pelo Pirata onde se bebia uma espécie de vermute com gás nas versões pirata ou perna de pau. Cruzo a Praça dos Restauradores e, na Rua dos Condes, vejo os primeiros chineses. Não apontei o nome, mas deve ser O Dlagão Flolido ou A Plimavela Etelna. Não vejo o Olímpia que exibia todos os maus filmes do mundo, e o Condes quer ser o templo de modernidade bacoca mas que seguirá o mesmo caminho que o Virgin no Éden que pelo menos vendia discos interessantes.
A Rua do Coliseu, refúgio de turistas perdidos que não sabem comer e se sentam no meio de rua e ouvem um acordeão e uma caixa de ritmos tocar «Lisboa é uma canção» e, assim, pensam que estão em Lisboa. No meio está o eterno Gambrinus que propõe pratos vulgares a 25/30 euros por dose. Algum problema freudiano deve ter, talvez recordações da juventude perdida, porque é mais caro do que o «novo» Tavares onde reinava o grande Joaquim Figueiredo (volta depressa Joaquim, este país precisa de ti!).
Já no Rossio, deixemos de lado o Nicola do Bocage e o Gelo dos intelectuais de esquerda dos anos 60 e paremos um momento na Tendinha «fundada em 1840» como diz no painel onde o empregado serve o fidalgo a cavalo. Podía ser uma coisa viva mas é só passado.

Razões poéticas

No quadriculado de ruas que o Marquês de Pombal fez construir, existem mais de uma centena de sítios que merecem atenção. Uns porque podiam ser e não são, como a tasca Val do Rio em frente do Animatographo, debaixo do Arco de Bandeira, onde o Pessoa bebia bagaços no balcão de mármore e o Martinho de Arcada que também não honra a memória do poeta.
Outros que mantêm uma certa dignidade, como o João do Grão, a Cervejaria Caracol onde me dizem que ainda se podem comer caracóis ou caracoletas com uma boa imperial, mas sobretudo o Munique, onde num ambiente de silêncio quase religioso se comem carapaus de escabeche, sardinhas fritas, peixinhos da horta, arroz de tomate, ou seja, o mesmo que nos outros sítios mas com uma qualidade que nos reconcilia com a vida, pelo menos durante umas horas.
Subindo novamente encontramos lojas como a Rádio Vitória «candeeiros bem bonitos, modernos, originais, etc.» exactamente como dizia o anúncio-canção há 40 anos: Na Rua de Vitória 46-48 «satisfaz-se plenamente o cliente mais afoito». Apesar de percebermos que o «afoito» era para rimar como o «8», não deixa de ser uma alegria encontrar um amigo de infância.
E acabemos, Zé, voltemos ao Largo de S. Domingos. Admiremos o sobreiro e o pinheiro que, mais vivos que tu ou eu, ladeiam a entrada do Palácio de Independência. Hoje não vamos ao Eduardino porque hoje tomamos a ginjinha na Ginjinha. Por quê? Primeiro por razões poéticas: Está escrito na frontaria «É mais fácil com uma mão/ dez estrelas agarrar/ fazer o sol enfriar/ reduzir o mundo a grude/ mas ginja com tal virtude/ é dificil encontrar». Segundo por razões médicas, como diz numa das portadas: «O Matheus, é um chochinha/ mais feio que um camafeu/ magro, tísico, um fuinha/ nunca na vida bebeu / nem um copo de ginjinha/ O irmão que sabe a virtude / d’ esta divina ambrósia/ é gordo como um almude/ bebe seis copos por dia / por isso goza saúde».
Ora bem, Zé, tu e mais a comunagem tua amiga que estão sempre a queixar-se da saúde pública; de que dão os hospitais aos Mellos e de que o Ministério não presta, nunca viram que o problema da saúde pública se resolve no nº 8 do Largo de S. Domingos.
Francamente!


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