O professor e o “R”

Correia da Fonseca
O senhor professor não teria necessidade de entrar naquela guerra. Mais: pareceu que não tinha muita vontade de o fazer: quando a questão foi suscitada pelo Júlio Magalhães (e decerto não sem antes ter havido um acordo prévio entre ambos, pois não é crível que os temas surjam ali por inteira surpresa), o senhor professor não deixou de dizer que se tratava de «uma polémica entre os políticos»), sendo que lá mais para diante referiu que «já foi político», utilizando um pretérito que dava sinal de afastamento real ou suposto. De qualquer modo, o facto é que deu opinião. E que o fez de um modo extremamente hábil, a confirmar a sua reputação em tais coisas, embora não de forma convincente para os telespectadores atentos e não excessivamente ignorantes. Resta saber, é claro, quantos ainda estarão neste grupo depois de décadas de desinformação, despolitização e analgesias diversas.
Estou a falar, é claro, do professor Marcelo Rebelo de Sousa e dos comentários que no passado domingo fez à questão suscitada pela direita ao tentar amputar o R da palavra Revolução. Não querendo, provavelmente, cumpliciar-se com a mistificação, e porventura sentindo-se condicionado pelas declarações de Mota Amaral que entretanto dissera que «primeiro foi a Revolução e a evolução foi depois», Marcelo optou por tentar uma sentença à maneira do Rei Salomão, cortando o 25 de Abril às fatias e atribuindo cada uma delas a uma tendência política. Segundo ele, cada qual terá «o seu 25 de Abril», cabendo à Esquerda o Abril da Revolução, ao PS um outro Abril correspondente à sua prática governativa (isto é, sabemo-lo nós, aos primeiros passos da contra-revolução legislativa e não só) e à Direita o tal 25 de Abril que «é evolução». Repare-se, porém, que a este último entendimento de Abril falta a explicitação do sentido da tal «evolução». E a falta é enorme e indispensável, pois é histórico que a evolução que a Direita imprimiu ao 25 de Abril foi e continua a ser no sentido do 24, em muitos aspectos aumentado e acrescido pelas mutações havidas no mundo durante os trinta anos entretanto decorridos.

O irredutível calendário

Temos, pois, que segundo o que o senhor professor explicou todos os sectores políticos teriam legitimidade para comemorar os trinta anos de Abril, embora cada um deles festejasse «o seu» 25. Foi, já se vê, um grande esforço de pacificação e consensualidade por parte de Marcelo. Infelizmente, porém, tem uma falha qualquer para além da suspeita, que não será apenas minha, de que o senhor professor, como bom militante do PSD, quis prestar mais um serviço ao seu partido. O serviço terá sido o de puxar para o PSD pelo menos uma pontinha do património nacional que o 25 de Abril é, ainda que apenas uma pontinha que seria pobre e esgarçada porque se circunscreveria à tal «evolução». A falha, essa tem a ver com essa coisa sólida que é o calendário e exclui irremediavelmente o PSD (do CDS-PP nem se fala, naturalmente!) das comemorações do 30º aniversário, pelo menos se prosseguir na tese de que «Abril é evolução». É que essa «evolução», quer se entenda com inteiríssima verdade que consistiu na paulatina destruição do ímpeto revolucionário de Abril quer dela se tenha uma opinião diversa embora desajustada da realidade, não comemora 30 anos neste ano de 2004. Quando muito, é admissível que a contagem do seu tempo se inicie nos finais de 75, e escrevendo isto já talvez eu esteja a fazer favor.
Assim se recorda, para não dizer que se demonstra, que o 25 de Abril de 1974 foi uma revolução. Traída, travada, por isso incompleta, mas Revolução. Aliás, bem o sabe decerto o professor Marcelo Rebelo de Sousa apesar do seu gesto de bom militante do PSD (mas talvez não tão bom comentador imparcial na TVI) ao querer lançar num abusivo disparate o que lhe terá parecido o remendo possível. Por sinal, tenho alguma curiosidade em saber, ou em adivinhar, como reagiu o jovem Marcelo de 74 à Revolução que viu nas ruas, ele que já antes escrevera no jornal «A Capital» artigos de opinião mais que reticentes relativamente à guerra colonial, artigos que a Censura só não terá cortado porque o futuro professor Marcelo já então se chamava Marcelo, e não por acaso. Essa, porém, é uma outra estória, marginal ao que aqui se sublinha: o 25 de Abril de 74 houve uma Revolução cujos 30 anos agora se festejam, e Marcelo Rebelo de Sousa sabe-o e confirma-o. O resto do que disse na TVI foi mais uma prestação das suas capacidades. Prefiro dizê-lo assim
que escrever «habilidades».


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