Algumas questões para reflectir (*)
O projecto de Resolução Política apresentado à 4ª Assembleia coloca importantes questões de concepção do trabalho político e de carácter ideológico.
Não se pode dizer que sejam novidades, muitas delas. Mas não são, em nenhum caso, mera reafirmação ritual de princípios ou de concepções, mas a confirmação, face a realidades do presente, da validade e da actualidade de questões anteriormente formuladas. Questões em relação às quais, quando existe problema, não é por serem mantidas, é por serem esquecidas ou subestimadas.
Vou fazer uma breve referência apenas a algumas:
- A primeira diz respeito à importância atribuída pelo PCP à integração de intelectuais, linha essencial que acompanha praticamente toda a sua existência, e que teve particular destaque nas reorganizações dos anos 30 e dos anos 40. Em 1936, Bento Gonçalves, na sua contestação à secretaria do Tribunal Militar Especial que o julgou, assume o PCP com «herdeiro dos valores intelectuais progressivos do povo português». Em 1946, o IV Congresso aborda a necessidade de atrair à luta antifascista aqueles a quem «a “política do espírito” do fascismo não permite a livre expressão das suas ideias ou da sua cultura». Ao longo de toda a sua história até ao presente, não só o PCP integrou muitas das mais importantes figuras da intelectualidade portuguesa, como muitos milhares de intelectuais assumiram e assumem uma activa e consequente militância revolucionária, alguns dos quais em tarefas da maior responsabilidade partidária. Já na 3ª Assembleia do Sector uma intervenção reivindicava, com razão, que falando-se de comunistas intelectuais, não se falasse de aliados, mas de comunistas como quaisquer outros. Mas sucede que a integração de intelectuais no Partido, se não representa uma aliança social, representa uma condição essencial para que essa aliança, estrategicamente fundamental para a classe operária, se realize. E o que hoje devemos aqui relembrar é que toda a nossa história nos ensina que essa aliança decisiva se constrói por vezes sobre uma forte tensão interna, que exige do Partido um permanente combate tanto a tendências de elitismo e de arrogância intelectual, como a tendências de sectarismo obreirista.
- Outra questão é a da unidade. No Projecto de Resolução Política a política relativa ao trabalho unitário está suficientemente desenvolvida, e não vou aqui repetir o que lá está escrito. Onde há Partido, há necessariamente iniciativa, acção e luta assentes na unidade e, se isso não se verifica, é porque o Partido não actua como lhe compete. Mas, dito isto, haverá talvez alguns aspectos a adiantar. Em primeiro lugar, a política de unidade, e de alguma forma a construção de alianças com camadas médias da sociedade, como é o caso dos trabalhadores intelectuais, assenta, em aspectos essenciais, no trabalho, na abertura e na iniciativa de cada militante. Nós não temos nenhum lugar onde um representante dos intelectuais comunistas vá assinar um tratado de aliança com um representante dos intelectuais anti neoliberais, ou onde um representante credenciado da classe operária vá assinar uma aliança social com uma representação conjunta dos pequenos e médios burgueses. As camadas e grupos sociais que queremos influenciar e atrair à acção conjunta ganham-se, em grande medida, um a um, e devemos ter consciência de que isso implica uma determinada forma de trabalhar. Forma de trabalhar que tem de ser apoiada na realização de iniciativas, num estilo de trabalho orgânico aberto e que procure o diálogo com todos aqueles que, não pensando como nós, se oponham a coisas contra as quais também lutamos, na participação, em igualdade de circunstâncias, em iniciativas e movimentos unitários da mais diferente natureza. Mas há aqui que reiterar uma posição: há pessoas, integradas nos chamados «novos movimentos sociais» que tomam como princípio que todos os objectivos de todos os movimentos têm igual importância. Para nós, não é nem poderia ser assim, sob pena de, alimentando uma infinidade de acções fragmentárias, não se dar um único passo real em frente. Não são igualmente importantes um movimento em defesa dos direitos dos trabalhadores e um movimento contra os toiros de morte. Não são igualmente importantes um movimento de camponeses que luta pela terra e um movimento de pessoas que, legitimamente, reclamam que a sua orientação sexual não seja motivo de discriminação. E, se tivéssemos que assumir prioridades, não poderíamos esquecer este facto. Há certamente muito importantes lutas a travar por mudanças de mentalidade. Mas mudanças de mentalidade reais são produzidas por mudanças sociais, políticas e culturais reais, e não o contrário.
- Outra questão é a que decorre do verbo resistir. Não o usamos isolado no lema da nossa Assembleia, e muito justamente. Resistir, sem a perspectiva do que vem a seguir, poderia significar, no limite, apenas adiar a derrota. Mas podemos dizer que o nosso Partido sabe tudo sobre a conjugação desse verbo, e não pode nunca subestimar o valor da resistência, nem permitir que a noção de resistência se reduza, no entendimento dos democratas, a um desinteressante e penoso programa de acções defensivas. Pelo contrário, é no campo da resistência, e em particular da resistência cultural e ideológica, que podemos encontrar algumas das perspectivas de trabalho mais entusiasmantes e criativas, e mais essenciais à ruptura com o estado das coisas dominante. Resistir significa sempre criar um outro espaço, e cabe aos intelectuais comunistas, no mesmo plano em que se empenham no combate a situações e políticas que bloqueiam e contrariam as necessidades nacionais de progresso e de desenvolvimento, animar e apoiar as iniciativas que, do lugar de diferença e de independência ideológica e de classe que é o nosso, afirmem e construam a outra realidade sobre a qual a alternativa política também tem de caminhar.
- A última questão diz respeito a uma citação de Marx que devemos utilizar com muitas cautelas: o comentário acerca da repetição da história, «primeiro como tragédia, depois como farsa». Se a frase é verdadeira para a farsa imperial de Louis Bonaparte e para o seu 18 de Brumário, nem sempre é aplicável com igual justeza. Muitas das sombras que pesam sobre o presente do nosso país e do mundo configuram repetições da história novamente como tragédia, independentemente de muitos dos seus protagonistas terem a aparência de personagens de farsa. Foram as características e as contradições do capitalismo português que conduziram à constituição do regime fascista tal como existiu no nosso país e não o contrário, e o processo contra revolucionário de recomposição do capitalismo monopolista de estado, por sua vez, conduziria inevitavelmente, como agora se verifica, ao ajuste de contas global com o 25 de Abril, no qual avultam já elementos de contornos fascizantes. Não o afirmamos por alarmismo, mas por realismo, e com a legitimidade de quem olha a sociedade de um ponto de vista de classe, do ponto de vista dos que têm tudo a perder se perderem os seus direitos e liberdades, individuais e colectivas. Não é de um regresso ao passado que se pode tratar, mas do risco de que regressem, sob outras formas, as condições do passado. Há seguramente realidades irreversíveis na sociedade portuguesa. Uma delas é absolutamente essencial, e chama-se Partido Comunista Português. Não é uma entidade abstracta nem apenas um património construído pelas gerações que nos antecederam, é todos, e cada um de nós. Da sua acção, da sua força, da sua influência, da sua capacidade de organizar e dinamizar uma grande frente social, política e cultural de resistência e de transformação depende, no fundamental, que não apenas seja contido o perigoso rumo de retrocesso que vivemos, mas que possamos retomar, no nosso país, o revolucionário trabalho de construção do futuro.
(*) Arquitecto. Intervenção na Assembleia do Sector Intelectual da ORL do PCP
- A primeira diz respeito à importância atribuída pelo PCP à integração de intelectuais, linha essencial que acompanha praticamente toda a sua existência, e que teve particular destaque nas reorganizações dos anos 30 e dos anos 40. Em 1936, Bento Gonçalves, na sua contestação à secretaria do Tribunal Militar Especial que o julgou, assume o PCP com «herdeiro dos valores intelectuais progressivos do povo português». Em 1946, o IV Congresso aborda a necessidade de atrair à luta antifascista aqueles a quem «a “política do espírito” do fascismo não permite a livre expressão das suas ideias ou da sua cultura». Ao longo de toda a sua história até ao presente, não só o PCP integrou muitas das mais importantes figuras da intelectualidade portuguesa, como muitos milhares de intelectuais assumiram e assumem uma activa e consequente militância revolucionária, alguns dos quais em tarefas da maior responsabilidade partidária. Já na 3ª Assembleia do Sector uma intervenção reivindicava, com razão, que falando-se de comunistas intelectuais, não se falasse de aliados, mas de comunistas como quaisquer outros. Mas sucede que a integração de intelectuais no Partido, se não representa uma aliança social, representa uma condição essencial para que essa aliança, estrategicamente fundamental para a classe operária, se realize. E o que hoje devemos aqui relembrar é que toda a nossa história nos ensina que essa aliança decisiva se constrói por vezes sobre uma forte tensão interna, que exige do Partido um permanente combate tanto a tendências de elitismo e de arrogância intelectual, como a tendências de sectarismo obreirista.
- Outra questão é a da unidade. No Projecto de Resolução Política a política relativa ao trabalho unitário está suficientemente desenvolvida, e não vou aqui repetir o que lá está escrito. Onde há Partido, há necessariamente iniciativa, acção e luta assentes na unidade e, se isso não se verifica, é porque o Partido não actua como lhe compete. Mas, dito isto, haverá talvez alguns aspectos a adiantar. Em primeiro lugar, a política de unidade, e de alguma forma a construção de alianças com camadas médias da sociedade, como é o caso dos trabalhadores intelectuais, assenta, em aspectos essenciais, no trabalho, na abertura e na iniciativa de cada militante. Nós não temos nenhum lugar onde um representante dos intelectuais comunistas vá assinar um tratado de aliança com um representante dos intelectuais anti neoliberais, ou onde um representante credenciado da classe operária vá assinar uma aliança social com uma representação conjunta dos pequenos e médios burgueses. As camadas e grupos sociais que queremos influenciar e atrair à acção conjunta ganham-se, em grande medida, um a um, e devemos ter consciência de que isso implica uma determinada forma de trabalhar. Forma de trabalhar que tem de ser apoiada na realização de iniciativas, num estilo de trabalho orgânico aberto e que procure o diálogo com todos aqueles que, não pensando como nós, se oponham a coisas contra as quais também lutamos, na participação, em igualdade de circunstâncias, em iniciativas e movimentos unitários da mais diferente natureza. Mas há aqui que reiterar uma posição: há pessoas, integradas nos chamados «novos movimentos sociais» que tomam como princípio que todos os objectivos de todos os movimentos têm igual importância. Para nós, não é nem poderia ser assim, sob pena de, alimentando uma infinidade de acções fragmentárias, não se dar um único passo real em frente. Não são igualmente importantes um movimento em defesa dos direitos dos trabalhadores e um movimento contra os toiros de morte. Não são igualmente importantes um movimento de camponeses que luta pela terra e um movimento de pessoas que, legitimamente, reclamam que a sua orientação sexual não seja motivo de discriminação. E, se tivéssemos que assumir prioridades, não poderíamos esquecer este facto. Há certamente muito importantes lutas a travar por mudanças de mentalidade. Mas mudanças de mentalidade reais são produzidas por mudanças sociais, políticas e culturais reais, e não o contrário.
- Outra questão é a que decorre do verbo resistir. Não o usamos isolado no lema da nossa Assembleia, e muito justamente. Resistir, sem a perspectiva do que vem a seguir, poderia significar, no limite, apenas adiar a derrota. Mas podemos dizer que o nosso Partido sabe tudo sobre a conjugação desse verbo, e não pode nunca subestimar o valor da resistência, nem permitir que a noção de resistência se reduza, no entendimento dos democratas, a um desinteressante e penoso programa de acções defensivas. Pelo contrário, é no campo da resistência, e em particular da resistência cultural e ideológica, que podemos encontrar algumas das perspectivas de trabalho mais entusiasmantes e criativas, e mais essenciais à ruptura com o estado das coisas dominante. Resistir significa sempre criar um outro espaço, e cabe aos intelectuais comunistas, no mesmo plano em que se empenham no combate a situações e políticas que bloqueiam e contrariam as necessidades nacionais de progresso e de desenvolvimento, animar e apoiar as iniciativas que, do lugar de diferença e de independência ideológica e de classe que é o nosso, afirmem e construam a outra realidade sobre a qual a alternativa política também tem de caminhar.
- A última questão diz respeito a uma citação de Marx que devemos utilizar com muitas cautelas: o comentário acerca da repetição da história, «primeiro como tragédia, depois como farsa». Se a frase é verdadeira para a farsa imperial de Louis Bonaparte e para o seu 18 de Brumário, nem sempre é aplicável com igual justeza. Muitas das sombras que pesam sobre o presente do nosso país e do mundo configuram repetições da história novamente como tragédia, independentemente de muitos dos seus protagonistas terem a aparência de personagens de farsa. Foram as características e as contradições do capitalismo português que conduziram à constituição do regime fascista tal como existiu no nosso país e não o contrário, e o processo contra revolucionário de recomposição do capitalismo monopolista de estado, por sua vez, conduziria inevitavelmente, como agora se verifica, ao ajuste de contas global com o 25 de Abril, no qual avultam já elementos de contornos fascizantes. Não o afirmamos por alarmismo, mas por realismo, e com a legitimidade de quem olha a sociedade de um ponto de vista de classe, do ponto de vista dos que têm tudo a perder se perderem os seus direitos e liberdades, individuais e colectivas. Não é de um regresso ao passado que se pode tratar, mas do risco de que regressem, sob outras formas, as condições do passado. Há seguramente realidades irreversíveis na sociedade portuguesa. Uma delas é absolutamente essencial, e chama-se Partido Comunista Português. Não é uma entidade abstracta nem apenas um património construído pelas gerações que nos antecederam, é todos, e cada um de nós. Da sua acção, da sua força, da sua influência, da sua capacidade de organizar e dinamizar uma grande frente social, política e cultural de resistência e de transformação depende, no fundamental, que não apenas seja contido o perigoso rumo de retrocesso que vivemos, mas que possamos retomar, no nosso país, o revolucionário trabalho de construção do futuro.
(*) Arquitecto. Intervenção na Assembleia do Sector Intelectual da ORL do PCP