Mais 1001 noites

Aurélio Santos
A me­nina es­tava triste, aga­chada junto de uma pedra do seu jardim des­truído e da casa des­mo­ro­nada. De vez em quando so­lu­çava, a cada re­cor­dação, boa ou má. E a única per­gunta que lhe res­tava era: porquê?
A me­nina tinha 12 anos e, até aquela noite, pai, mãe e seis ir­mãos. Agora es­tavam todos ali, qui­etos de vez, entre flores des­tro­çadas, es­com­bros, ar­bustos ras­gados e ár­vores de braços caídos, no ce­nário do muro der­ro­cado ser­pen­teado de tre­pa­deiras.
Vi­eram os sol­dados ame­ri­canos que le­varam os corpos e qui­seram levá-la a ela. Mas a me­nina disse: Não, eu quero ficar aqui...
...Quantas me­ninas vivem assim nestes dias na Bagdad de She­ra­zade?
Jus­ti­fi­ca­ções para esta guerra não fal­taram: era a «de­mo­cracia contra a di­ta­dura», a «ajuda hu­ma­ni­tária», a «des­truição das armas de des­truição em massa...» Mas armas de des­truição em massa, as únicas que a me­nina co­nheceu foram as bombas ame­ri­canas. «In­te­li­gentes»? - foi por isso que lhe des­truíram a casa, o jardim, lhe ma­taram pai, mãe e ir­mãos?
Agora, de­pois desse «fogo amigo» ter des­tro­çado o país, o go­verno ame­ri­cano pro­meteu re­com­pensas de mi­lhares de dó­lares a quem, dentre os mil «es­pe­ci­a­listas» (da CIA?) en­vi­ados esta se­mana ao Iraque, ar­ranje «provas» de que as armas mor­tí­feras afinal exis­tiam mesmo. Provas, «vivas ou mortas», talvez como se dizia nos tempos do Far West: ou seja, no caso, ver­da­deiras ou falsas. Não por acaso, o ocu­pante ame­ri­cano re­cusa o re­gresso a Bagdad dos ins­pec­tores da ONU. Será porque eles de­nun­ci­aram, esta se­mana, a fal­si­fi­cação de do­cu­mentos com que os USA pre­ten­deram jus­ti­ficar a in­vasão?
Ine­vi­ta­vel­mente vem à me­mória o livro de Da­niel Ells­berg agora pu­bli­cado, 30 anos após o fim da guerra do Vi­etnam, no qual o autor, que foi gra­duado em ge­neral como as­sis­tente es­pe­cial para aná­lise da es­tra­tégia do Pen­tá­gono no Vi­etnam, re­solveu contar a ver­dade ao seu povo, com o tí­tulo «Se­gredos: me­mória do Vi­etnam e dos do­cu­mentos do Pen­tá­gono». Livro que é também uma re­flexão amarga sobre a de­ca­dência da de­mo­cracia ame­ri­cana.
Se­gredos: como, por exemplo, a fal­si­fi­cação mon­tada pelos ser­viços se­cretos sobre um su­posto ataque ao con­tra­tor­pe­deiro ame­ri­cano Madox por parte da ma­rinha norte-vi­et­na­mita. Ell­berg leu os re­la­tó­rios se­cretos dando conta de que tudo quanto se disse nessa al­tura ao Con­gresso ame­ri­cano e ao pú­blico era men­tira. Para co­brir a agressão, fri­a­mente de­ci­dida pelos planos de do­mi­nação im­pe­ri­a­lista. Tal como agora. Daqui a 30 anos saber-se-á talvez a ver­dade toda...
... En­tre­tanto, na noite sem luz de uma ci­dade sem pão e sem água, a me­nina que quer ficar na sua casa de Bagdad tem muitas his­tó­rias para contar à sua irmã She­ra­zade - aquela que, há mil anos, criou os fas­ci­nantes contos das 1.001 noites...
Só que, agora, Bagdad só tem para contar his­tó­rias trá­gicas da «li­ber­tação» ame­ri­cana e das suas ope­ra­ções mi­li­tares de­sig­nadas com o nome de có­digo «caos e terror».



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