Fractura digital

Francisco Silva
«Fractura Digital» foi um termo introduzido salvo erro no Brasil para o conceito, em inglês, de «Digital Divide». Ouvi-o pela primeira vez, se não estou em erro, numa reunião interministerial, realizada no CCB entre os ministros da Ciência do Brasil e Portugal, lá p’ròs tempos do governo Guterres. Nessa ocasião - e os tempos correm rápidos e com voracidade -, também ocasião de presidência espanhola da União Europeia, foram assinados protocolos entre os dois governos para a área da Sociedade da Informação. Entre eles encontrava-se um protocolo relativo à interligação das redes de investigação científica dos dois países - uma première (desculpem-me o termo, mas como ele é empregue há tanto tempo para as primeiras exibições dos filmes no nosso País…), uma première de sucesso para as ligações deste tipo entre a Europa e a América do Sul. Mais, uma ligação sem passar pelos EUA. Um sucesso que, tanto quanto sei, entretanto morreu e as coisas voltaram, entretanto, por completo aos carris da normalidade dos países europeus importantes, que são todos (grandes, pequenos, periféricos, etc) menos nós. Pois. Nessa altura, devido à iniciativa, esforço e entusiasmo de alguns cientistas e técnicos de ambos os lados do Atlântico, funcionários da Administração Pública e empregados de Operadoras de telecomunicações, foi possível fazer acontecer tal efémera flor. Mas lá me estou outra vez a afastar. A afastar-me, não direi do tema mas da forma como pretendia focar este texto!
Então o termo «Fractura Digital». Para além do facto de este termo ter surgido do Brasil, como já vai começando a ser a norma para os novos termos, em particular na área da Sociedade da Informação e da Internet - que de nós tal não é de esperar: a première ainda vinha do francês, o digital divide do inglês via EUA -, vamos à questão da fractura digital propriamente dita, até porque ela foi um dos argumentos principais para o lançamento da talvez não muito célebre «Cimeira Mundial para a Sociedade da Informação», WSIS de seu acrónimo.
(Reincido: o facto de terem sido os brasileiros a inventarem o termo «Fractura Digital» também se terá devido a eles, e os seus dirigentes, se assumirem sem equívocos, do outro lado da fractura, enquanto os «desenvolvidos» portugueses - em particular, os seus dirigentes -, acham que são dos favorecidos pelo digital divide; deste modo, na sua trágica e balofa soberba, nem imaginam quanto aprenderiam dos brasileiros que, nesta área, estão muito mais avançados do que «nós» imaginamos.)
Ora, pouco antes da realização da (primeira fase da) WSIS em Dezembro de 2003, em Genebra, começou a ser posta em causa a fractura digital ou pelo menos a forma como ela tem sido colocada. E, em particular, apontava-se para as debilidades e falta de rigor das estatísticas disponíveis. Aliás, a meu ver, esta terá sido uma das razões a ajudar à relativa pouca luminosidade mediática do evento. Desde então têm vindo à luz do dia estudos e artigos da área conservadora e liberal a matraquear esta tecla. E não é por virem desse lado que os não devemos estudar. As críticas, ainda mais as dos lados adversos, se construídas com qualidade, podem constituir-se nos nossos melhores alimentos. Ao contrário do que se dá com as repetições exaustivas e dos apoios acríticos.
Porque - e o argumento parece ir de si - o parque de computadores e de acessos à Internet, bem como, em geral, às telecomunicações, muito o indica, está a crescer mais depressa do lado dos desfavorecidos pela fractura digital, do que do lado dos favorecidos. Isto é, em vez de se estar a cavar o fosso existente, este estaria a diminuir. E, sendo verdadeira esta afirmação genérica, ocorrem, desde logo, duas sentenças críticas.
A primeira, verdadeira, mas a mais superficial e usual por quem procura não ser enganado: Ora, não admira, nos países ricos a penetração de todos estes meios já é tão elevada que o crescimento - sempre dado em termos de percentagens - tem de ser menor; os países pobres têm baixo acesso e um aumento de 100% sobre 1dá para chegar a 2!...
A segunda, também verdadeira, contudo mais eficaz para a compreensão da realidade: Ora, nuns países e nos noutros é a procura solvente que avança - e as elites dos países pobres estão a equipar-se; o grosso do povo fica na mesma, como os deserdados dos países ricos. Por isso, não é por começar a tratar do sintoma da fractura digital - a falta de acesso à Internet e quejandos - que se resolve o problema. Mais, a algum prazo, não acontecendo outras mudanças, tal crescimento encontrará barreiras intransponíveis.


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