O desenho como aparição (2)

A mão inteligente do pintor

Manuel Augusto Araújo
(...)Estas abó­badas so­nhadas / in­fi­ni­ta­mente es­curas / in­fi­ni­ta­mente claras / in­fi­nitas / im­pe­ne­trá­veis / são / as nossas ca­beças so­nhando

En­zens­berger, Car­ceri d’in­ven­zione
em Po­emas Po­lí­ticos, trad. Al­meida Faria

A exposição «Desenho - primeiro inventário e desenhos recentes» de Rogério Ribeiro, visitável na Casa da Cerca, tem um mapa de percurso em que existe um plano temporal que se ajusta, com muita aproximação, à sequenciação dos temas em que a exposição se organiza. Esse dispositivo possibilita que seja perceptível a evolução do traço e a desenvoltura que o gesto adquire e, sobretudo, que nos desenhos de Rogério Ribeiro nada se perde, tudo se ganha mesmo quando a pesquisa do mundo real, que é a sua preocupação dominante, escolhe os caminhos mais imprevistos e as personagens mais inusitadas para lhe darem corpo.
Sem ocupar um lugar central na exposição, o grupo de desenhos intitulado «O Atelier do Pintor» é um exercício descritivo das perplexidades que assaltam o artista no momento de transportar para o papel o que preexiste no seu imaginário e que se percebe estar a ser constantemente alterado no próprio acto do transporte. Afigura-se ser intenção subjacente a esses desenhos libertá-los de qualquer subjectividade interpretativa, formulando as interrogações que passam para o papel com uma clareza que parece possibilitar uma descrição exacta e que mais se acentua por ser este o núcleo de desenhos onde o modo de fazer é mais neoclássico. No entanto este é um terreno que está armadilhado porque rapidamente nos apercebemos que mesmo aqui, quando a leitura tem uma aparência mais clara o que faz pensar ser mais fácil obter uma imagem descritiva exacta do objecto do desenho, o artista não nos permite ir além do plano que vemos e imediatamente apreendemos, impedindo-nos com as aparências da linearidade textual de descrever o que não se vê e que parece ter sido esgotado em planos carregados de claras citações, de evidentes narrações. E se nos detemos neste grupo de desenhos é porque ele esclarece o que, no percurso lógico apontado pelo dispositivo expositivo, antes tinha sido visto e que parecia ser o resultado da simples revelação do negativo da realidade pela mão do desenhador e introduz os desenhos seguintes, onde a realidade é captada nos mais diversos universos. No lugar geométrico dos diversos grupos temáticos em que a exposição se organiza, está solidamente implantado o artista que desenha incansavelmente com a serenidade de uma imensa sageza indignações, ironias, sobressaltos, novos e velhos, conhecidos e ainda desconhecidos, mais os enigmas que se abrem para outros enigmas que assaltam a vida tal qual ela é, real e irreal, vivida e imaginada. E desenha, desenha para nos assombrar.
É evidente que em Rogério Ribeiro há uma necessidade narrativa que tanto se explicita nos primeiros desenhos como na última série de desenhos «Ícaro» , dividida por capítulos – «labirinto», «ensaiar o voo» e «ousar a viagem» - e que culmina nos desenhos mais recentes que se expõem separadamente.
Essa necessidade narrativa vai-se explanando com cada vez maior clareza e se o Livro Oitavo das Metamorfoses de Ovídio está no plano recuado da série Ícaro é porque já aí Rogério Ribeiro recusa o papel activo de ilustrador para se tornar o argumentista de si próprio, rescrevendo a história original numa série de desenhos e pinturas que a convocam para a modernidade.
Essa necessidade narrativa é tão crescente que nos «Desenhos Recentes» convergem, a partir de um só autor, imagem, texto e ideologia como um espaço teórico onde, em todos os desenhos que completam esta série, se desenvolve uma iconologia sombria sobre a morte e a dor, em que, sobrevoando o texto que é a sua água subterrânea e a ideologia que é a sua pulsação, o desenho se afirma como um objecto estético que tem uma finalidade em si próprio sem denegar a circunstancialidade temporal, socialmente balizada, do acto criativo.

P.S.- É es­tranho que esta ex­po­sição não fi­gure em muitos dos ro­teiros da im­prensa, já não é es­tranho o si­lêncio das au­to­pro­cla­madas cas­san­dras das nossas artes. Essa gente não tem vida, tem vi­di­nhas! Há um poema de Jorge de Sena -«Ca­mões di­rige-se aos seus con­tem­po­râ­neos» - que lhes as­senta como uma luva.



Mais artigos de: Argumentos

Um retrato desfocado

Com honestidade mínima, não é possível dizer que a televisão portuguesa tem a tradição de reflectir com verdade e com coragem o país que a olha e que, por seu turno, ela deveria olhar com olhos de ver. Para que tenhamos a certeza de que é hoje assim, basta reparar na actual proliferação de programas supostamente cómicos,...