O poeta que tomou partido
Há vinte anos, precisamente no dia 18 de Janeiro de 1984, morria José Carlos Ary dos Santos, o poeta da Revolução de Abril, como ele próprio gostava de ser chamado e reconhecido. Poucos poetas e artistas portugueses mostraram tão grande firmeza de convicções e terão vivido de forma tão coerente com elas como o fez Ary dos Santos. Isso valeu-lhe ódios e incompreensões, dirigidos a ele e às causas que abraçou, ao Partido que tomou.
Mas a firmeza e coerência do Poeta valeram-lhe sobretudo o carinho, a solidariedade e o reconhecimento do povo. Aquele povo simples que ele cantou e por quem optou na luta de todas as lutas, a Luta de Classes. O povo a quem ele se dirigiu com os seus poemas, que foram cantados, recitados em comícios, em iniciativas partidárias, em fábricas, cooperativas, sindicatos e associações. O mesmo povo que não esquece o seu poeta, vinte anos depois.
Poucos poetas terão alcançado em vida a popularidade de José Carlos Ary dos Santos. Não uma popularidade balizada em números de livros vendidos ou edições esgotadas, mas outra, medida em reconhecimento, camaradagem e – porque não? – em amor fraternal, daquele que nasce da comunhão de ideais, de muitas lutas travadas lado a lado. Ao contrário de alguns intelectuais do seu tempo – e de muitos outros tempos –, Ary dos Santos tomou partido e viveu de acordo com as suas opções. Na luta de classes, tomou o lado dos trabalhadores e lutou pelo socialismo e pelo comunismo. Com o seu Partido.
O «poeta-militante» cantou, em verso, o trabalho produtivo, nas fábricas e nos campos. E celebrou os seus protagonistas, sementes da sociedade nova que desejava construir. «Transformar a matéria é transformar/ a própria sociedade que nós somos/ ser operário é apenas saber dar/ mais um pouco de nós ao que nós somos», escreveu no poema A fábrica, segundo do Tríptico do Trabalho. Já no primeiro, A Terra, confiava que «As entranhas da terra hão-de passar/ o tempo da humana gestação/ e parir como um rio a rebentar/ o corpo imenso da Revolução». N’ O Futuro, o terceiro e último desta série, revela as suas profundas convicções no avanço da Revolução: «O que é preciso é termos confiança/ se fizermos de Maio a nossa lança/ isto vai meus amigos isto vai.»
Se o Poeta ia buscar ao povo muita da sua inspiração, este buscava na sua poesia, e na força e verdade com que a declamava, as palavras que dão sentido à luta e ao sonho. As palavras de Ary eram as do povo. E ele sabia-o: «Quanto mais noites passam sou mais povo», escreveu. Esta irmandade era forte, tão forte que nem a morte a quebrou. Pode ler-se em O Diário de 21 de Janeiro de 1984 que «nunca um poeta teve um funeral assim».
O caixão de Ary dos Santos, coberto a seu pedido por uma bandeira do PCP – a tal que ele queria cada vez mais alta – e transportado por dirigentes do Partido, foi seguido desde a Sociedade Portuguesa de Autores por muita gente: camaradas, amigos e outros. Um mar de outros. Segundo o mesmo jornal, «muitos milhares de pessoas quiseram, apesar da chuva intensa que ontem de manhã se abateu sobre Lisboa, dizer no cemitério do Alto de S. João, o último adeus ao poeta José Carlos Ary dos Santos. Foi um adeus sentido, feito de punhos cerrados, lágrimas e palavras de ordem como “Ninguém fecha as portas que Abril abriu”, “Abril vencerá” e “Unidos venceremos”».
Não!
Poeta directo e incisivo – talvez até provocador e insolente –, Ary dos Santos dizia o que pensava. Mantinha-se firme, de pé «como deve estar quem é». Uma coisa não lhe podiam pedir: que se vergasse, que se calasse. Num dos seus poemas, deixa bem clara essa atitude, que sempre foi a sua: «Serei tudo o que disserem/ por inveja ou negação:/ Demagogo mau profeta/ falso médico ladrão/ prostituta proxeneta/ espoleta televisão/ Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado não!»
Esta maneira de estar – e as opções políticas e de classe que tomou – era incómoda como incómodo foi durante toda a sua vida. Quer quando escreveu A Tourada e Desfolhada – verdadeiras pedradas quando cantados na televisão em pleno fascismo – quer quando produziu As Portas que Abril Abriu, um magnífico hino à liberdade e aos seus construtores, que desagradou aos que desde a primeira hora conspiravam contra a Revolução. A estes, dedicou-lhes também alguns poemas. Num deles, afirma: «Para dizer quem é basta o que disse/ é uma besta humana que rumina/ é um filho da puta é um burguês.»
Tão incómodo era o Poeta que as tentativas para lhe apagar a memória, e o profundo significado da sua vida e obra, começaram no próprio dia do seu desaparecimento. Na edição de O Diário de 20 de Janeiro de 1984, apenas dois dias depois da morte, Correia da Fonseca escrevia, na sua crónica de crítica televisiva, que «anteontem ao fim da noite, acabara o poeta de morrer, a RTP, saqueando-lhe a biografia, não reconheceria nele mais que “o publicista” e o autor de canções. De facto, foi como se tivesse querido ofuscar-lhe a imagem».
Mais atrás no mesmo texto, o cronista havia constatado a dimensão do saque: «Nada sobre a sua actividade literária (Prémio Almeida Garrett em 54, muito antes das primeiras cantigas). Nada sobre a sua actividade como declamador com vários discos gravados. Nada sobre a sua apaixonada intervenção como cidadão e nada acerca da enorme admiração popular que mereceu pela veemente devoção à liberdade e à causa de um futuro mais justo.»
Vinte anos passados, Ary dos Santos está praticamente arredado dos programas escolares e a televisão, as rádios e os jornais recordam-no – das pouquíssimas vezes que o fazem – apenas como escritor de poemas para canções (que o foi, e dos melhores). Mas a verdadeira dimensão de Ary permanece viva. Nos seus poemas, na força verdadeira da sua voz. E sobretudo no coração dos que continuam a sua luta.
Voz de resistência
Centenas de pessoas homenagearam, no passado domingo, o poeta José Carlos Ary dos Santos. No dia em que se assinalavam 20 anos sobre o seu desaparecimento, a Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP promoveu uma romagem ao túmulo do Poeta, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
Os camaradas compareceram, empunhando cravos vermelhos. Muitos, de tão novos, não teriam outra memória de Ary senão aquilo que dele leram, a sua voz forte escutada nos discos dos pais ou difundida nas iniciativas do Partido, as lutas que travaram apoiados nas suas palavras. Outros, mais velhos, recordavam histórias passadas com o Poeta, os combates travados em comum, as vitórias e as derrotas de um caminho trilhado em conjunto. Mas todos viam nele um camarada, um companheiro. Que está presente.
Os jovens comunistas seguiam à frente do desfile, com uma coroa de cravos vermelhos, que depuseram na campa do Poeta, de mármore negro. Chegados ao local, coube a Ruben de Carvalho intervir em nome do Partido. As palavras do membro do Comité Central recordavam que a poesia de Ary dos Santos não convida à resignação, mas à luta à organização, à resistência. Tudo o que faz perdurar e avançar os ideais por que se bateu e aos quais deu o melhor da sua vida: a sua generosidade, o seu talento, a sua arte. Tudo o que levou tanta e tanta gente – muita ainda não nascida na manhã de 18 de Janeiro de 1984, quando morreu o Poeta – àquele local, no passado domingo. Após a intervenção de Ruben de Carvalho, ecoou a forte voz de Ary dos Santos: «Poeta castrado não!»
Terminada a homenagem, os camaradas seguiram o seu caminho, para as lutas que faltam travar. Como o Poeta teria querido.
Ary presente!
Ary dos Santos deixou, antes de morrer, os direitos de autor de toda a sua obra ao seu Partido, o PCP. E teve neste o seu grande divulgador. Com a sua obra poética e os poemas que escreveu para algumas das mais belas canções da música portuguesa pelas Edições Avante!, Ary dos Santos foi alvo de uma grande homenagem na última edição da Festa do Avante!, com um espectáculo que preencheu a noite de sexta-feira. Para além do espectáculo (que reuniu músicos como Paulo de Carvalho, Kátia Guerreiro, Paula Oliveira e Paulo Moutinho), Ary dos Santos esteve presente no Pavilhão Central – através de uma exposição evocativa – e os seus poemas estiveram em toda a Festa.
A evocação do Poeta prossegue com a edição do CD de As Portas que Abril Abriu, disponível hoje com o Avante!, e com outras iniciativas ainda por realizar.
O «poeta-militante» cantou, em verso, o trabalho produtivo, nas fábricas e nos campos. E celebrou os seus protagonistas, sementes da sociedade nova que desejava construir. «Transformar a matéria é transformar/ a própria sociedade que nós somos/ ser operário é apenas saber dar/ mais um pouco de nós ao que nós somos», escreveu no poema A fábrica, segundo do Tríptico do Trabalho. Já no primeiro, A Terra, confiava que «As entranhas da terra hão-de passar/ o tempo da humana gestação/ e parir como um rio a rebentar/ o corpo imenso da Revolução». N’ O Futuro, o terceiro e último desta série, revela as suas profundas convicções no avanço da Revolução: «O que é preciso é termos confiança/ se fizermos de Maio a nossa lança/ isto vai meus amigos isto vai.»
Se o Poeta ia buscar ao povo muita da sua inspiração, este buscava na sua poesia, e na força e verdade com que a declamava, as palavras que dão sentido à luta e ao sonho. As palavras de Ary eram as do povo. E ele sabia-o: «Quanto mais noites passam sou mais povo», escreveu. Esta irmandade era forte, tão forte que nem a morte a quebrou. Pode ler-se em O Diário de 21 de Janeiro de 1984 que «nunca um poeta teve um funeral assim».
O caixão de Ary dos Santos, coberto a seu pedido por uma bandeira do PCP – a tal que ele queria cada vez mais alta – e transportado por dirigentes do Partido, foi seguido desde a Sociedade Portuguesa de Autores por muita gente: camaradas, amigos e outros. Um mar de outros. Segundo o mesmo jornal, «muitos milhares de pessoas quiseram, apesar da chuva intensa que ontem de manhã se abateu sobre Lisboa, dizer no cemitério do Alto de S. João, o último adeus ao poeta José Carlos Ary dos Santos. Foi um adeus sentido, feito de punhos cerrados, lágrimas e palavras de ordem como “Ninguém fecha as portas que Abril abriu”, “Abril vencerá” e “Unidos venceremos”».
Não!
Poeta directo e incisivo – talvez até provocador e insolente –, Ary dos Santos dizia o que pensava. Mantinha-se firme, de pé «como deve estar quem é». Uma coisa não lhe podiam pedir: que se vergasse, que se calasse. Num dos seus poemas, deixa bem clara essa atitude, que sempre foi a sua: «Serei tudo o que disserem/ por inveja ou negação:/ Demagogo mau profeta/ falso médico ladrão/ prostituta proxeneta/ espoleta televisão/ Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado não!»
Esta maneira de estar – e as opções políticas e de classe que tomou – era incómoda como incómodo foi durante toda a sua vida. Quer quando escreveu A Tourada e Desfolhada – verdadeiras pedradas quando cantados na televisão em pleno fascismo – quer quando produziu As Portas que Abril Abriu, um magnífico hino à liberdade e aos seus construtores, que desagradou aos que desde a primeira hora conspiravam contra a Revolução. A estes, dedicou-lhes também alguns poemas. Num deles, afirma: «Para dizer quem é basta o que disse/ é uma besta humana que rumina/ é um filho da puta é um burguês.»
Tão incómodo era o Poeta que as tentativas para lhe apagar a memória, e o profundo significado da sua vida e obra, começaram no próprio dia do seu desaparecimento. Na edição de O Diário de 20 de Janeiro de 1984, apenas dois dias depois da morte, Correia da Fonseca escrevia, na sua crónica de crítica televisiva, que «anteontem ao fim da noite, acabara o poeta de morrer, a RTP, saqueando-lhe a biografia, não reconheceria nele mais que “o publicista” e o autor de canções. De facto, foi como se tivesse querido ofuscar-lhe a imagem».
Mais atrás no mesmo texto, o cronista havia constatado a dimensão do saque: «Nada sobre a sua actividade literária (Prémio Almeida Garrett em 54, muito antes das primeiras cantigas). Nada sobre a sua actividade como declamador com vários discos gravados. Nada sobre a sua apaixonada intervenção como cidadão e nada acerca da enorme admiração popular que mereceu pela veemente devoção à liberdade e à causa de um futuro mais justo.»
Vinte anos passados, Ary dos Santos está praticamente arredado dos programas escolares e a televisão, as rádios e os jornais recordam-no – das pouquíssimas vezes que o fazem – apenas como escritor de poemas para canções (que o foi, e dos melhores). Mas a verdadeira dimensão de Ary permanece viva. Nos seus poemas, na força verdadeira da sua voz. E sobretudo no coração dos que continuam a sua luta.
Voz de resistência
Centenas de pessoas homenagearam, no passado domingo, o poeta José Carlos Ary dos Santos. No dia em que se assinalavam 20 anos sobre o seu desaparecimento, a Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP promoveu uma romagem ao túmulo do Poeta, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
Os camaradas compareceram, empunhando cravos vermelhos. Muitos, de tão novos, não teriam outra memória de Ary senão aquilo que dele leram, a sua voz forte escutada nos discos dos pais ou difundida nas iniciativas do Partido, as lutas que travaram apoiados nas suas palavras. Outros, mais velhos, recordavam histórias passadas com o Poeta, os combates travados em comum, as vitórias e as derrotas de um caminho trilhado em conjunto. Mas todos viam nele um camarada, um companheiro. Que está presente.
Os jovens comunistas seguiam à frente do desfile, com uma coroa de cravos vermelhos, que depuseram na campa do Poeta, de mármore negro. Chegados ao local, coube a Ruben de Carvalho intervir em nome do Partido. As palavras do membro do Comité Central recordavam que a poesia de Ary dos Santos não convida à resignação, mas à luta à organização, à resistência. Tudo o que faz perdurar e avançar os ideais por que se bateu e aos quais deu o melhor da sua vida: a sua generosidade, o seu talento, a sua arte. Tudo o que levou tanta e tanta gente – muita ainda não nascida na manhã de 18 de Janeiro de 1984, quando morreu o Poeta – àquele local, no passado domingo. Após a intervenção de Ruben de Carvalho, ecoou a forte voz de Ary dos Santos: «Poeta castrado não!»
Terminada a homenagem, os camaradas seguiram o seu caminho, para as lutas que faltam travar. Como o Poeta teria querido.
Ary presente!
Ary dos Santos deixou, antes de morrer, os direitos de autor de toda a sua obra ao seu Partido, o PCP. E teve neste o seu grande divulgador. Com a sua obra poética e os poemas que escreveu para algumas das mais belas canções da música portuguesa pelas Edições Avante!, Ary dos Santos foi alvo de uma grande homenagem na última edição da Festa do Avante!, com um espectáculo que preencheu a noite de sexta-feira. Para além do espectáculo (que reuniu músicos como Paulo de Carvalho, Kátia Guerreiro, Paula Oliveira e Paulo Moutinho), Ary dos Santos esteve presente no Pavilhão Central – através de uma exposição evocativa – e os seus poemas estiveram em toda a Festa.
A evocação do Poeta prossegue com a edição do CD de As Portas que Abril Abriu, disponível hoje com o Avante!, e com outras iniciativas ainda por realizar.