Processo de paz na Irlanda do Norte descarrilou

Eleições nada resolveram

Manoel de Lencastre
Ao longo de todo o ano de 2003 assistimos a constantes dificuldades no processo de paz no Ulster. O governo de David Trimble demitiu-se. O IRA (Exército Republicano Irlandês) recusou entregar as armas sem garantias adequadas. Os protestantes nunca se calaram afirmando-se como democratas mas recorrendo a processos próprios de fanáticos vassalos do imperialismo. Os governos de Londres e Dublin à procura da melhor oportunidade para a convocação de eleições. O povo, escravo na selva espessa do capitalismo, vivendo, ainda, com alguma esperança...
As pessoas falam do Iraque. Discute-se futebol em todos os «pubs» de Belfast. Católicos preferem o Celtic. Protestantes desanimam face aos maus resultados do Rangers. Os terroristas das facções unionistas sentem-se a perder terreno porque o povo trabalhador exige, de facto, a paz. Fala-se de espiões. Dizem que o IRA dispõe de informadores um pouco por toda a parte. Mas a desinformação campeia. Ela está bem assente entre os unionistas (partidários da união com a Grã-Bretanha), entre os serviços de «intelligence» dos colonialistas britânicos e nos meios dominantes do patronato e dos negócios em geral onde o ódio à Irlanda republicana é profundo e constante.
As eleições tinham de realizar-se. Se o anterior parlamento deixara de poder funcionar porque havia espiões em todo o aparelho governamental, tinha de tentar-se conhecer, uma vez mais, o sentimento do eleitorado. À direita conservadora, protestante, reaccionária, interessava que o principal partido protestante (Ulster Unionist Party), o de David Trimble, fosse ultrapassado pelo Democratic Unionist Party do Reverendo Ian Paisley, e que este conseguisse a maioria absoluta no suspenso parlamento de Stormont para que, enfim, o poder lhe caísse nas mãos. Se isto acontecesse, a polícia voltaria aos processos repressivos e sanguinários de antigamente e uma nova confiança surgiria para que o passado se afirmasse, uma vez mais, como o caminho do futuro.
Temia-se, entretanto, que os restantes partidos consolidassem posições e que a votação no «Sinn Fein» partido aliado do IRA, demonstrasse, uma vez mais, a vontade firme dos patriotas republicanos e católicos de lutar por um radioso amanhã que deixasse o triste e negro passado, de que ainda mal se saiu, no caixote do lixo da História. Após incontáveis adiamentos, as eleições para deputados a Stormont foram, finalmente, convocadas. Mas antecipava-se poder o novo parlamento ganhar uma composição tal que tornasse impossível a constituição de um governo. Infelizmente, foi isso o que aconteceu.

O drama continua

Contaram-se os votos. Mas enquanto isso acontecia, o que levou o melhor de dois dias, era impossível não recordar as consequências dos últimos 34 anos de conflito. De assassínios e torturas. De bombardeamentos. De detenções de patriotas. O Exército britânico nas ruas. Católicos despedidos dos seus empregos. Fábricas vazias. As prisões cheias. O IRA levando a guerra à própria Grã-Bretanha. O Metro de Londres ameaçado. O centro de Manchester destruído. Republicanos irlandeses tratados como criminosos. Inocentes fechados nas penitenciárias britânicas. As greves da fome e as suas dramáticas sequelas. Tropas britânicas a desmantelarem telhados nas residências de democratas. «Rebels! Rebels!» gritavam os protestantes ao invadirem as ruas dos bairros católicos. As revoltantes marchas dos orangistas. Homens de negócios pró-unionistas inventando esquemas de inexistentes indústrias para ganharem acesso a capitais reservados à criação de empregos que não tinham a mínima intenção de criar. O próprio Paisley, que nada percebe da vida industrial, a tentar convencer ministros à concessão de fundos do Estado aos seus amigos. A tudo isto assistiu este correspondente do «Avante!». Com tudo isto sofreu. Não lhe foi difícil encontrar a verdade que define a tragédia do Ulster.
As eleições, portanto, realizaram-se em fins de Novembro. Como se esperava, David Trimble e o seu «Ulster Unionist Party» perderam terreno para o partido de Paisley que se tornou na formação principal entre os partidos protestantes e naquele com mais lugares no parlamento. Por outro lado, confirmou-se que o «Sinn Fein» ultrapassava os sociais-democratas tornando-se no principal partido entre a população católica. Ninguém, evidentemente, teria podido atingir a maioria absoluta. Este parlamento inviabilizou-se mesmo antes de ser convocado. É por isso que se pressente estar o Secretário de Estado britânico da Irlanda do Norte a preparar-se para convocar eleições, de novo, já na próxima Primavera ou mesmo antes.

Posições dos partidos
no Parlamento de Stormont:


Partido Democrático Unionista 30 lugares;
Partido Unionista do Ulster 27 lugares;
Sinn Fein 24 lugares;
Partido Social-Democrata e Liberal 18 lugares;
Partido da Aliança Democrática 6 lugares;
Outros 3 lugares;

Como se vê, os dois partidos do protestantismo, se unidos, poderiam constituir governo. Mas as respectivas posições contradizem-se. Enquanto o Partido Unionista do Ulster (David Trimble) favorece a participação dos partidos católicos no Executivo, os «democratas» unionistas (Reverendo Ian Paisley) não admitem essa participação e pretendem governar sozinhos. Numa só coisa estão de acordo: na exigência de que o IRA entregue as armas.

A Voz da História

A chamada Irlanda do Norte (Ulster) não passa de uma província no conjunto irlandês. A história da sua continuada ligação ao Reino Unido é complexa e repleta de violências. Trata-se de um território com pouco mais de um milhão de habitantes dominado por agrários ricos e industriais voltados para o mercado britânico - todos protestantes. Assim...

1169 – Chegada dos anglo-normandos à Irlanda celta já devastada por invasões «vikings»;

1603 - Com os ingleses bem estabelecidos em toda a Irlanda, dominando o próprio castelo de Dublin, os patriotas liderados pelas famílias O’Neill e O’Donnelll tentaram restabelecer a supremacia irlandesa e católica no seu próprio país. Mas foram derrotados em Kinsale (1601). Era o fim da Irlanda gaélica. Os protestantes escoceses e ingleses, entretanto, inventavam a teoria da «plantação do Ulster» para, lá se instalando, apropriarem-se das belas e férteis terras daquela província da Irlanda. Estes colonizadores estão na origem, como é evidente, das contradições que se seguiram e prosseguem;

1649 – Com a vitória de Cromwell na Guerra Civil inglesa e a execução do rei, Charles I, a Irlanda teria de ser submetida ao protestantismo e os seus recursos económicos divididos pelos militares a quem o citado Cromwell não podia pagar; surgiram novas vagas de colonizadores (puritanos, calvinistas, presbiterianos ...); todos os católicos se viram expropriados, onze milhões de acres das suas terras foram confiscados;

1689 – Restabelecida a monarquia, o rei James II, que era católico, foi substituído no trono inglês pelo orangista holandês, William III, após um golpe de Estado a que chamam a «Gloriosa Revolução». Mas o rei tentou resistir em território irlandês. O movimento jacobita já recuperara o Ulster e procedia, agora, ao cerco da cidade de Derry. Mas esta resiste e a 1 de Julho, William III confronta James II na famosa batalha do rio Boyne em que o rei e os jacobitas sofreram uma clamorosa derrota;

1789 – A Revolução francesa transmite novas esperanças aos patriotas irlandeses, mas, em …

1791 – Surge em Belfast e, mais tarde, em Dublin, a Sociedade dos Irlandeses Unidos que tinha como finalidade fazer avançar a reforma política de toda a Irlanda independentemente de posições religiosas;

1798 – Depois de levantamentos populares nas províncias de Leinster e Munster, os Irlandeses Unidos saíram às ruas no Ulster (condados de Antrim e Down) mas foram dominados por largas massas de protestantes sectários pró-britânicos;

1828 – A Irlanda católica encontra, finalmente, um ‘leader’ natural para a sua causa, o advogado Daniel O’Connell. A sua acção conduziria à Lei da Emancipação dos Católicos, mas o seu projecto de anulação da Lei da União da Irlanda à Grã-Bretanha galvanizou a nação dando lugar a comícios monstros em todo o país. A potência colonial, entretanto, não quis ouvir a voz dos irlandeses;

1845-46 – A produção de batatas não se consumou e a fome caiu sobre a Irlanda. Um milhão de mortos. Um milhão de fugitivos para Inglaterra, para a Escócia, para os Estados Unidos. Mas enquanto a fome enegrecia o país, a industrialização do Ulster acelerava surgindo fábricas de produtos têxteis e estaleiros navais;

1872 – Registam-se combates de natureza sectária nas ruas de Belfast. Entretanto, a industrialização dera origem ao aparecimento de um largo sector de classe operária integrando trabalhadores católicos e protestantes. Mas os empregos mais especializados e melhor pagos iam para estes...

1880 – O desenvolvimento da luta política intensifica-se devido à acção de Charles Stewart Parnell criando condições para que, em 1912, se apresentasse ao Parlamento britânico um projecto de lei prevendo a criação de um governo irlandês em Dublin e a realização de eleições gerais para deputados;

1912 – Os protestantes do Ulster mobilizaram-se em massa, dirigidos por políticos pro-fascistas (Edward Carson e James Craig), contra o projecto em questão. Como agora acontece, o seu interesse estava em que a província do Ulster (Irlanda do Norte) continuasse ligada aos britânicos. Para que tal se verificasse preferiam, como ainda preferem, voltar as costas ao seu próprio país...

1916 – A 24 de Abril, as forças patrióticas irlandesas saíram às ruas em Dublin. Eram comandadas pelo dirigente sindical e socialista de convicções marxistas, James Connolly. Enfrentaram heroicamente o exército de ocupação britânico, mas acabaram por ser dominados por forças superiores. A bandeira tricolor republicana, entretanto, subiu no telhado dos Correios de Dublin. Muitos dos patriotas envolvidos foram fuzilados pelos ingleses. Connolly, enfrentou o pelotão de execução amarrado a uma cadeira devido a não poder manter-se de pé porque os ferimentos recebidos em combate lhe gangrenaram as pernas;

1919 – O Parlamento irlandês reuniu contando o ‘Sinn Fein’ 73 lugares; mas surgiam bolsas de insurreição armada dirigidas pelo IRA contra a presença inglesa;

1921 – Assinatura do Tratado Anglo-Irlandês negociado por Arthur Griffith e Michael Collins. Ficou estabelecido que o Ulster permaneceria integrado no Reino Unido (o que continua a verificar-se) mas que toda a Irlanda passaria à categoria de domínio britânico, o que lhe dava a independência mas não a República. O regime republicano nasceria mais tarde. Collins seria eliminado, mas a chamada Irlanda do Norte permanece escrava do calvinismo e do presbiterianismo, ideias religiosas agitadas, evidentemente, pelo capitalismo.


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