Comentário

Depois da Maia, Aveiro

Natacha Amaro
Quase dois anos volvidos sobre o vergonhoso julgamento de 17 mulheres na Maia, assistimos a novas investigações e perseguições revoltantes, culminando no julgamento a decorrer em Aveiro. A grande questão que se nos coloca perante estes julgamentos de mulheres e outros «cúmplices» é se poderemos tolerar que continuem a ser julgadas e presas até três anos mulheres acusadas de decidir sobre questões do seu foro íntimo e privado. Importa que todos nós repudiemos esta legislação que qualifica o aborto como crime e criminosas as mulheres que decidem interromper uma gravidez.
Assim, e à semelhança do julgamento da Maia, a deputada do PCP ao Parlamento Europeu (PE), Ilda Figueiredo, iniciou um abaixo assinado de solidariedade com as mulheres acusadas em Aveiro, denunciando a vergonha deste julgamento, relembrando recomendações internacionais sobre a matéria e exigindo à Assembleia da República (AR) que ponha um fim a esta legislação que condena as mulheres. Em cerca de dez dias, até ao encerramento para férias natalícias, tinham subscrito esta declaração mais de meia centena de deputados ao PE, que se solidarizaram com estas mulheres acusadas em Aveiro.

A acção do PE

No PE, nada disto é novo, tal como não é novidade o atraso civilizacional que representa um Estado-Membro que ainda envia para a prisão mulheres que interromperam uma gravidez. Apesar da União não ter competências neste domínio, várias resoluções têm sido aprovadas no sentido de fornecer orientações e propor iniciativas úteis para fomentar a cooperação, de forma a reduzir as disparidades dentro da comunidade a nível dos direitos na área da saúde sexual e reprodutiva, no acesso das mulheres aos serviços de saúde reprodutiva, à contracepção e à interrupção voluntária da gravidez (IVG).
Numa resolução sobre saúde sexual e reprodutiva de Julho de 2002 o PE recomenda que a IVG «seja legal, segura e universalmente acessível», exortando os governos dos Estados-Membros a «se absterem, em quaisquer circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos ilegais». Mais claro que isto, parece-me difícil. No entanto, o Governo português, que parece ler tão claramente nas entrelinhas dos documentos europeus sobre liberalizações, privatizações ou flexibilização e se apressa em ser o aluno aplicado, não parece reconhecer sequer a existência de tal resolução. Não parece também estar interessado na recomendação da mesma resolução para se iniciar um processo de aprendizagem mútua, comparando dados, partilhando experiências positivas e boas práticas nas políticas e programas dos diferentes Estados. Para o Governo, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, não há aprendizagem a fazer, a lição está bem estudada.
Noutro relatório, já em 2003, referia-se que, todos os anos, morrem em todo o mundo cerca de 600 mil mulheres em resultado directo da gravidez e, destas, 78 mil mortes resultam de abortos praticados em condições de risco. Refere ainda que práticas abortivas perigosas ameaçam a vida de muitas mulheres e que as mortes e lesões que provocam podem ser evitadas através de medidas seguras e eficazes no domínio da saúde reprodutiva.
Não há, pois, margem para dúvidas relativamente ao apoio do PE ao desenvolvimento de políticas nacionais de saúde sexual e reprodutiva de qualidade e acessíveis a todos.

Situação nacional

Cá no burgo, a hipocrisia é gritante. Os governantes que «compreendem» as mulheres que necessitam abortar e declaram a sua «não condenação» são os mesmos impossibilitam a alteração do Código Penal que despenaliza o aborto. Estas afirmações esporádicas não são mais do que formas de branqueamento do não cumprimento da sua responsabilidade de fazer valer as recomendações constantes em convenções internacionais, em resoluções do PE e de organizações internacionais em que Portugal participa.
Não são referendos que vão impedir a prisão de mulheres por decidirem sobre o seu corpo, como o passado mostrou e o PCP tantas vezes alertou. Apenas à AR cabe legislar sobre a IVG, alterando uma lei que é desajustada da realidade, injusta, desumana e cruel para as mulheres. A despenalização da IVG não impedirá que cada cidadã faça, no futuro, a sua escolha de acordo com as suas opções de natureza moral, religiosa, ideológica ou política, ao contrário de hoje, em que o Estado impõe de forma coerciva e punitiva um só caminho: a criminalização da mulher.
Por esta ser uma causa da civilização e também da humanidade, exige-se solidariedade para com mais um grupo de mulheres que são devassadas na sua intimidade e liberdade individual, em tribunais nacionais, e impõe-se um duro combate pela despenalização do aborto em Portugal.


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