Velho filme, questão de hoje
Um dia destes, a RTP transmitiu, um pouco inesperadamente, um filme realizado por King Vidor em 1934. Trazia o título quase litúrgico de «O Pão Nosso de Cada Dia», mas desta vez não se tratava de mais uma das frequentes fantasias patetas decididas por distribuidores nacionais: o título português correspondia à tradução literal do título original. Ora bem: a transmissão de «O Pão Nosso de Cada Dia» foi saudada por mim, embora silenciosa e secretamente, com alguma emoção, e por mais de um motivo. Em primeiro lugar, perdoe-se-me o narcisismo, porque este trabalho de Vidor foi dos primeiros filmes que me foi dado ver, ainda obviamente pelas mãozinhas do pai e da mãe, e, embora essa ida ao cinema não tenha ocorrido no ano da produção, eu era um miúdo suficientemente tenro para que tenha ficado comigo, até agora, a memória de algumas das imagens do filme. Contudo, não me parece que «O Pão Nosso de Cada Dia» seja precisamente uma obra-prima de primeiríssima linha. Então, porque terá ficado na memória de um puto porventura mais dado a apreciar as curtas metragens do Rato Mickey?
Agora, que revi o filme tantos anos depois, acho que sei responder. É que «O Pão Nosso de Cada Dia», rodado nos Estados Unidos da Depressão e trazendo um relato do que por lá se passava designadamente nos aspectos que relacionam crise e fome, por um lado, com terra e trabalho colectivo por outro lado, produziu fácil impacto num miúdo que, em casa, ouvia os pais comentarem o que pelo mundo e pelo país ia de crise e de fomes. As sequências finais do filme, com a chegada da água, trazida pelas mãos humanas, à terra sedenta que por ela longamente esperava, tinham um claro tom épico, nas imagens e no som, a que dificilmente seria indiferente um garoto que não fosse surdo nem exageradamente burro. E ficam de fora deste conjunto de motivos outros factores que podiam ter sido relevantes para a cabecinha de um fedelho que ainda não era capaz de acompanhar as legendas que desfilavam céleres no ecrã. Por exemplo: quando um dos personagens, ainda que personagem secundário, afirma que o que é preciso ali é um socialismo americano. Para quem saiba o que a palavra «socialismo» significou nos Estados Unidos desde sempre, fica claro até onde foi a audácia de King Vidor, temperada embora pela cena de uma invocação colectiva aos céus pedindo a protecção divina para a tarefa de resgate da terra até aí infértil.
Terra, posse e omissão
Com razão ou sem ela, tenho a suspeita de que o filme de King Vidor influenciou Jorge Brum do Canto quando ele rodou a sequência da queda da chuva, longamente ansiada, no seu «A Canção da Terra». Mas é preciso reter que esta palavra, terra, continua a ser hoje, um pouco por todo o mundo embora nuns lugares mais terrivelmente que noutros, uma questão fundamental por resolver, sendo que a TV só muito raramente e com extrema discrição aborda o assunto como questão primordial do tempo que vivemos e do que outros viverão depois de nós. Fala-se alguma coisa, é certo, dos problemas da água, do ar, dos combustíveis, mas a terra, a legitimidade da sua posse e do seu uso, as desigualdades monstruosas que decorrem da disparidade na sua partilha, parecem não ser para a TV em geral assunto suficientemente atraente e actual, como se se tratasse de caso já bem resolvido e por isso arquivado. Quanto aos Estados Unidos, não sei de nenhum trabalho para o Cinema ou para a TV que depois de «O Pão Nosso» tivesse voltado ao assunto, excepto a adaptação cinematográfica de «As Vinhas da Ira». Estará tudo bem na Grande América de George W? Se calhar, está, e os que seriam agricultores desempregados há muito que se transferiram para outros sectores e serão agora vendedores de seguros ou de PPR’s. Ou escaparam ao desemprego alistando-se como voluntários na US Army e estão agora no Iraque a defender a construção local de uma sociedade justa sob a batuta de Donald Rumsfeld.
Para lá de outras considerações, porém, o reencontro com «O Pão Nosso de Cada Dia» suscita-me um sentimento de nostalgia que rejeito porque já não tenho idade para me permitir ser nostálgico. É que, revendo-o, apercebi-me de que em 34, esteva o cinema a emergir como grande força de comunicação/informação (o sonoro tinha poucos anos), pareceu a King Vedor que podia utilizá-lo para público testemunho de um enorme problema que se desdobrava em enormes tragédias. Hoje, com um muito maior património de capacidades tecnológicas, as coisas são muito mais difíceis. Porque há mais sentinelas nas esquinas, mais cães de guarda nas portas, mais dólares a pagar vigilâncias com dispensa de recibos. Também, felizmente, mais indignações a crescer.
Agora, que revi o filme tantos anos depois, acho que sei responder. É que «O Pão Nosso de Cada Dia», rodado nos Estados Unidos da Depressão e trazendo um relato do que por lá se passava designadamente nos aspectos que relacionam crise e fome, por um lado, com terra e trabalho colectivo por outro lado, produziu fácil impacto num miúdo que, em casa, ouvia os pais comentarem o que pelo mundo e pelo país ia de crise e de fomes. As sequências finais do filme, com a chegada da água, trazida pelas mãos humanas, à terra sedenta que por ela longamente esperava, tinham um claro tom épico, nas imagens e no som, a que dificilmente seria indiferente um garoto que não fosse surdo nem exageradamente burro. E ficam de fora deste conjunto de motivos outros factores que podiam ter sido relevantes para a cabecinha de um fedelho que ainda não era capaz de acompanhar as legendas que desfilavam céleres no ecrã. Por exemplo: quando um dos personagens, ainda que personagem secundário, afirma que o que é preciso ali é um socialismo americano. Para quem saiba o que a palavra «socialismo» significou nos Estados Unidos desde sempre, fica claro até onde foi a audácia de King Vidor, temperada embora pela cena de uma invocação colectiva aos céus pedindo a protecção divina para a tarefa de resgate da terra até aí infértil.
Terra, posse e omissão
Com razão ou sem ela, tenho a suspeita de que o filme de King Vidor influenciou Jorge Brum do Canto quando ele rodou a sequência da queda da chuva, longamente ansiada, no seu «A Canção da Terra». Mas é preciso reter que esta palavra, terra, continua a ser hoje, um pouco por todo o mundo embora nuns lugares mais terrivelmente que noutros, uma questão fundamental por resolver, sendo que a TV só muito raramente e com extrema discrição aborda o assunto como questão primordial do tempo que vivemos e do que outros viverão depois de nós. Fala-se alguma coisa, é certo, dos problemas da água, do ar, dos combustíveis, mas a terra, a legitimidade da sua posse e do seu uso, as desigualdades monstruosas que decorrem da disparidade na sua partilha, parecem não ser para a TV em geral assunto suficientemente atraente e actual, como se se tratasse de caso já bem resolvido e por isso arquivado. Quanto aos Estados Unidos, não sei de nenhum trabalho para o Cinema ou para a TV que depois de «O Pão Nosso» tivesse voltado ao assunto, excepto a adaptação cinematográfica de «As Vinhas da Ira». Estará tudo bem na Grande América de George W? Se calhar, está, e os que seriam agricultores desempregados há muito que se transferiram para outros sectores e serão agora vendedores de seguros ou de PPR’s. Ou escaparam ao desemprego alistando-se como voluntários na US Army e estão agora no Iraque a defender a construção local de uma sociedade justa sob a batuta de Donald Rumsfeld.
Para lá de outras considerações, porém, o reencontro com «O Pão Nosso de Cada Dia» suscita-me um sentimento de nostalgia que rejeito porque já não tenho idade para me permitir ser nostálgico. É que, revendo-o, apercebi-me de que em 34, esteva o cinema a emergir como grande força de comunicação/informação (o sonoro tinha poucos anos), pareceu a King Vedor que podia utilizá-lo para público testemunho de um enorme problema que se desdobrava em enormes tragédias. Hoje, com um muito maior património de capacidades tecnológicas, as coisas são muito mais difíceis. Porque há mais sentinelas nas esquinas, mais cães de guarda nas portas, mais dólares a pagar vigilâncias com dispensa de recibos. Também, felizmente, mais indignações a crescer.