Questionar a ordem do sagrado

Manuel Augusto Araújo
Uma pequena luz de dúvida instala-se no olhar da primeira mulher quando começa a assimilar o seu próprio corpo, quando começa a descobrir indecisos sinais, que não consegue identificar, mas que lhe provocam uma enorme inquietação.
Hora a hora, dia a dia, colecciona mais memórias de si. E quanto mais memórias adquire maiores são as diferenças que coloca entre si e os outros habitantes daquele espaço irreal. De revelação em revelação, o seu corpo constrói-se no conhecimento de que é único e que a sua entrega ao corpo do companheiro, que lhe tinha sido destinado, não se obriga a calendários do cio e têm outras derivações e finalidades que não se reduzem às das relações mecânicas que visam o prolongamento da espécie .
Este encontro consigo própria tem urgência em ser explicado ao outro que continua a viver a seu lado na alegria da ignorância que, para ela, é cada vez mais insuportável .
Decide-se por um jogo de sedução para que, pouco a pouco, o olhar animal do homem fique limpo da inocência das certezas absolutas, enquanto a entrega dos corpos ultrapassa a linearidade das exarcerbações sensuais e se inicia nos jogos eróticos, nos transes da volúpia, na ternura dos paroxismos pulsionares.
A descoberta do erotismo pela primeira mulher e pelo primeiro homem marca a diferenciação da actividade sexual e o ano primeiro da idade do homem. Perante a cólera e a impotência de deus, abandonam o pesadelo do paraíso, aventuram-se pelas incertezas do mundo .
É o primeiro gesto libertador e o primeiro passo na infinita caminhada pelo que seria denominado de civilização e o primeiro passo da ainda mais infinita caminhada pelos trilhos da libertação do homem.
Mas deus não foi arrancado ao céu e atirado para a terra, como milhares de anos depois Baudelaire (1) continuava a desejar, e vinga-se publicando um decálogo de leis estratificadoras de uma sociedade dividida em classes que incentiva despreocupadamente a ocorrência do paganismo idólatra da propriedade privada ,estatuí uma moral farisaica, concede primado ao homem e está na raiz dos fundamentalismos.
Adquire assim, no nosso quadro civilizacional, a figuração erótica um valor subversivo contra a repressão sexual que é e será sempre parcela da repressão social.
E é a figuração erótica, directa ou indirectamente relacionada com o sagrado, que tem estado sempre presente na obra artística de Noémia Cruz que, de um ou de outro modo, ilustra e torna inteligível a repressão moral e social da religião, sempre numa perspectiva feminina e feminista não primária e sem afectar a sintaxe autónoma da arte .
Noémia Cruz assume um permanente discurso de subversão bem visível num dos seus primeiros trabalhos, uma extraordinária Última Ceia, onde estão presentes os universos de Bunuel e Pasolini, em que Jesus distribui aos seus discípulos um seio feito de doce de ovos em vez de pão e que, com essa subtil substituição, esvazia a celebração eucarística do erotismo místico (erotismo que se relaciona com a experiência do sacrifício religioso e se diferencia do erotismo dos corpos pela ausência de objecto), trazendo-a para o mundo dos prazeres terrenos e dos rituais pagãos que foram apropriados pela igreja, aos mais recentes Ex-Votos em que se agradecem as graças dos milagres da erecção, da concepção, etc.. Violenta ironia , ainda mais acentuada pela voluptuosidade dos desenhos em que se recupera o imaginário popular, à negação do hedonismo e à submissão a um deus capado de sentidos que obriga à aceitação da excepção e dos prodígios o que deve estar naturalmente integrado no prazer quotidiano de celebrar a vida.
A delicadeza formal das suas esculturas e a fragilidade dos materiais escolhidos para as suas esculturas ainda mais sublinham o traço grosso de um programa de trabalho que se desenquadra deliberadamente da moral dominante hipocritamente disposta à permissividade até ao momento em que o discurso ideológico preponderante não seja desequilibrado ,o que não é permitido pela escultora.
Por tudo isto saudemos Noémia Cruz: pela força da sua convicção ,pela beleza (não tenhamos medo da palavra) das suas esculturas.

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(1) (...) Raça de Caim, trepa aos céus / e atira Deus para a terra (Abel et Cain/ Les Fleurs du Mal;La Révolte)



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