Esquerda, Direita e… Estado

Luís Vicente
Deixou de fazer sentido a distinção entre «esquerda» e «direita». Tal dicotomia faz parte da arqueologia política, apregoam os arautos neoliberais e os seus objectivos aliados. Tornou-se tão recorrente este tipo de afirmação, que uma reflexão sobre a mesma não pode deixar de ser feita.
Apregoam os neoliberais uma justa «economia de mercado» a que os comunistas usam chamar simplesmente «economia capitalista». Esta serve os interesses da burguesia, detentora dos meios de produção, e implica a concentração da riqueza nas mãos de poucos capitalistas à custa da força do trabalho da maioria da população que não detém meios de produção. Mas há outras visões. A «economia socialista», por exemplo, defende o controlo social dos meios de produção e da riqueza.
Se pela primeira pugna a chamada «direita», a segunda é objectivo da denominada «esquerda» e, neste sentido, as designações «esquerda» e «direita» continuam a ter todo o sentido e operacionalidade.
Tornou-se comum ouvirmos eminentes pensadores da burguesia defenderem «o deslocamento da iniciativa do Estado para a iniciativa do cidadão». Por iniciativa do cidadão, sejamos claros, entenda-se iniciativa privada. E por iniciativa privada entenda-se, iniciativa do capital financeiro e industrial. Quem obviamente tirará proveito dessa retirada meramente económica do Estado será o capital.
Que não haja ilusões. Para a burguesia o Estado é uma necessidade imperativa. É-o, em primeiro lugar, enquanto instrumento de repressão e aparelho militar para uso imperial. É-o, em segundo lugar, enquanto detentor de sectores que, apesar de não rentáveis, são fundamentais à própria dinâmica da economia capitalista. E, enfim, é-o em terceiro lugar porque o Estado capitalista é tutelado politicamente por um governo que não passa de um comité de negócios dos homens da finança.
Quando os modernos pensadores burgueses defendem que o Estado é secundário ou «para pôr de lado», esquecem-se de dizer que, na sua opinião, o é apenas enquanto detentor de meios de produção rentáveis. A ideia de privatização progressiva do sector público, consiste de facto em privatizar os meios de produção que se tornaram lucrativos, como os transportes e as comunicações que são agora a «coqueluche» do capital pela vertiginosa inovação tecnológica que os atingiu, a electrónica, a indústria militar, o grande negócio do entretenimento e espectáculo, a educação, a biotecnologia, a farmacologia e a saúde. Veja-se a nova ofensiva capitalista com o intuito de os privatizar, não fosse tão belo maná ficar em mãos públicas, e não fossem os respectivos trabalhadores poderem vir a explorar as novas possibilidades económicas de que dão mostras estes sectores.

O papel do Estado

De facto o Estado é uma peça-chave do modelo capitalista moderno, mas um Estado restruturado em aparelho de repressão e aparelho militar para uso imperial, no qual se reforçam os mecanismos superestruturais de reprodução e hegemonia de classe.
Contrariamente, para a «economia socialista» o capital deverá ser encarado como um produto comunitário e, neste sentido, pode apenas ser posto em movimento pela actividade comum de todos os membros da sociedade (cf. Marx e Engels, 1848, Manifesto do Partido Comunista). Assim, para a «economia socialista», o capital não é um bem pessoal, é um bem social. Neste contexto o Estado não passa de uma necessidade transitória.
Quando a propriedade perde o seu carácter de classe, desaparecidas as diferenças de classe e controlada a produção pela posse colectiva da sociedade, o poder público perde o carácter político. Isto considerando que, «em sentido próprio, o poder político (Estado) é o poder organizado de uma classe para a opressão de uma outra (e que administra pessoas e não coisas). Se o proletariado na luta contra a burguesia necessariamente se unifica em classe, por uma revolução se faz classe dominante e como classe dominante suprime violentamente as velhas relações de produção, então suprime juntamente com estas relações de produção as condições de existência da oposição de classes, as classes em geral, e, com isto, a sua própria dominação como classe» (Marx e Engels, op. cit.), ou seja, suprime o Estado.
Nas sociedades capitalistas o trabalho humano e a força de trabalho, potencial ou tangível, sempre foram mercadorias; os transportes e as comunicações, a educação, ou a saúde apenas estiveram «fora» do capitalismo, para melhor o servir, enquanto a expectativa de remuneração do capital investido foi baixa; quando se torna elevada, também passam a mercadoria.
A intenção de privatização do sector público pelos governos do capital levanta a questão pungente do papel do sector público no processo de transição para o socialismo. No fim do século XIX e nos alvores do século XX não existiam formações económicas não-capitalistas no seio do capitalismo e, portanto, todas as transformações deviam começar após a transição de superstruturas e conquista do poder pelo proletariado.

Pacto com o diabo

Mas o mundo mudou, e olhando hoje apenas para o caso português, com o enorme peso da economia pública na saúde, na segurança social, no ensino e numa série de outras actividades, a situação em que se poderia atingir uma revolução na esfera política seria muito diferente da de 7 de Novembro de 1917.
De facto, o capitalismo, por razões que se prendem com melhores oportunidades de negócio noutros segmentos da economia, aceitou ou impôs ao Estado, ao seu Estado, que desenvolvesse um sistema público nos sectores menos rentáveis livrando-se assim dos encargos que tal sistema implicava.
Ao fazê-lo, o capitalismo arriscou um «pacto com o diabo», ou com o «espectro», como diziam Marx e Engels em 1848, pacto esse que consistiu em confiar num modo de produção que é já embrionariamente alternativo, que era apenas controlado politicamente e que poderia, fruto das contradições na sociedade e da luta de classes, tornar-se uma «dor de cabeça». Poderia, por exemplo, o sector público desatar a desenvolver-se, a ser eficiente e competitivo com o próprio capitalismo e, sobretudo, os seus trabalhadores poderiam querer controlar com mais curta rédea os seus destinos em contradição com as prioridades do próprio capitalismo.
Este perigo, o perigo de que uma economia pública criada para servir o capitalismo se desenvolvesse e passasse a ameaçar o próprio capitalismo, não foi geralmente antecipado pela burguesia. Para esta, a situação agravou-se ainda mais quando o sistema público adquiriu surpreendentes virtudes de negócio intrínseco, como parece agora acontecer com o ensino e é seguramente o grande tema do momento na saúde.
São os próprios teóricos do capital que hoje estão bem cientes as suas dificuldades. Como pode ler-se num documento da OCDE de 1996: «A reforma mais necessária, e também a mais perigosa, é a das empresas públicas, trata-se de as reorganizar ou de as privatizar. Esta reforma é muito difícil porque os trabalhadores deste sector estão normalmente bem organizados e controlam domínios estratégicos. Bater-se-ão com todos os meios possíveis (...) sem que o governo seja suportado pela opinião (...). Quanto mais um país desenvolveu um sector parapúblico, mais esta reforma será difícil de realizar». Sábias palavras!
A luta de interesses (de classe) agora exprime-se, do lado socialista, na luta pelo controlo democrático dos sistemas públicos, por lhes conferir uma orientação favorável aos trabalhadores e contra a alienação das novas possibilidades de negócio entretanto surgidas, e por mantê-las (as oportunidades de negócio) do lado dos trabalhadores.

Novas realidades

Hoje o sistema público deve adaptar-se a outras realidades. Às perspectivas que se abrem de uma sociedade onde todos os cidadãos tenham o seu lugar, em que os direitos de cada um sejam considerados, em que o bem estar de todos possa ser assegurado.
A reflexão centra-se agora na definição da finalidade do sistema público e no controlo do seu eventual valor mercantil, seja ele expresso em mercado convencional ou se mantenha num sistema não mercantil.
Hoje, antes de conquistar o poder, os trabalhadores poderão deter já importantes posições em sectores de poderosa economia não-capitalista. E esta situação é significativamente diferente daquela a que se assistia no início do século XX.
Agora a via para o socialismo poderá passar também pela autonomia da economia pública, retirando-a das mãos do Estado, e reforçando o controlo dos cidadãos e dos seus próprios trabalhadores sobre ela, com o correlativo controlo do sobreproduto aí produzido.
É esta a reflexão que a esquerda tem que fazer. Enquanto o capital pretende expropriar a economia pública, dotada do seu novíssimo valor, as forças socialistas deverão querer que a economia pública permaneça nas mãos do Estado, aceitando que o sobreproduto seja controlado precisamente por um governo dominado por essa mesma burguesia capitalista?
Em 1974, os comunistas lutaram nos campos pela Reforma Agrária. A Reforma Agrária enquadrava-se num sistema de economia avançada, autónoma, com o controlo do sobreproduto pelos trabalhadores.
Enquanto o objectivo do capital é a manutenção do Estado como aparelho de reprodução do status quo, como meio de repressão e de domínio imperial, o objectivo supremo dos comunistas é o fim do Estado.
Na linha de «O Estado e a Revolução», a defesa da economia pública, contra o capitalismo, não deverá ser feita com maior eficácia na luta pela sua desgovernamentalização, pela sua libertação do Governo Central que não é mais do que um comité de negócios do grande capital e pelo efectivo controlo dos trabalhadores?


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