O caldinho
O caldo está pronto e, é claro, sem o caldo nunca poderia haver sopa e o mais que adiante se lhe siga. Naturalmente que o caldo só por si não basta: é preciso juntar-lhe ingredientes, temperos, algum entulho, mas a basezinha está feita e o resto virá com vagar, em princípio não há pressas. Convém dizer, antes que esqueça, que o caldo aqui referido não é exactamente matéria de cozinha, ou porventura melhor, que a cozinha em que ele se integra é outra. Trata-se do caldo da politicofobia que anda há décadas a ser cozinhado e atingiu o ponto de acabamento bastante. Com ele, desde que servido em adequadas doses quotidianas, pode-se fazer praticamente tudo de um país e da população que o habita. Não é preciso grande sabedoria para se saber o que a partir da sua receita foi conseguido noutros lugares onde, por vezes, os resultados se tornaram tristemente célebres. Por cá, não há-de ser nada disso, isto é terra de brandos costumes como toda a gente sabe, além de que a nossa pertença a uma Europa muitíssimo democrata que, para reforço dessa virtude, agora vive em grande parte de olhos cravados nos democratíssimos States, constitui um seguro contra o pior. Nem, de qualquer modo, as coisas exigiriam ir muito longe. Este caldinho, tal como está, mantido quentinho em lume brando, chega muito bem como base de trabalho não só por agora como nos previsíveis tempos mais próximos.
A receita é ódio à política e aos políticos, a todos os políticos porque «eles são todos iguais», não é invenção nova: herdámo-la pelo menos do nosso saudosos avôzinho, o doutor Salazar, que sempre fez dela abundante e profícuo uso. A utilização actual não é a única peça da herança salazarista que esta nossa democracia meteu a uso: basta citar os exemplos do horror aos comunistas que em maior ou menor grau é partilhado por todos os partidos reconhecidamente democráticos e a austeridade orçamental que a doutora Manuela pôs no altar com uma devoção tal que dá logo para perceber que aquilo é fé no santo patrono, não é opção decorrente de um exercício de inteligência. Porém, repara-se já agora que o ódio aos políticos se mistura muitas vezes com o ódio aos comunistas. Entende-se: os comunistas falam muito de política mesmo quando não são «políticos». Não é de mais dizer, de resto, que o caldo da antipolítica tem vindo a ser preparado ao longo do tempo para colocar os comunistas, esses politizados sem emenda, numa espécie de ilegalidade vivencial que logo faz tombar sem eles a desconfiança de quem detesta a política, mesmo e sobretudo sem saber do que se trata. Pois, nesta como noutras matérias, na ignorância é que está o ganho do anticomunismo.
Coisas das estatísticas
Perguntar-se-á, porém, a que vem toda esta conversa numa coluna consagrada à televisão. A resposta é que vem muito a propósito. Citemos uma justificação entre muitas e uma motivação próxima no tempo. A justificação é que, creio, está longe de ser por mero acaso que o nosso País vem à cabeça das estatísticas europeias no número de horas que os cidadãos gastam por dia a ver TV e no desapreço que eles mantêm pelos «políticos». E que a televisão portuguesa parece ter descoberto a sua vocação profunda: a detracção da política e dos políticos. É muito certo que a imprensa escrita não lhe fica atrás, antes pelo contrário, mas é claro que em terra de iliteracia aguda a diferença do impacto entre a TV e os jornais é abissal. E, como «isto anda tudo ligado» tal como um dia foi dito, entre emparvecimento intensivo dos telespectadores, sistemática ocultação de quanto seja suspeito de aproximar à cultura (isto é, ao entendimento das coisas e das gentes) e politicofobia, há vínculos fundamentais para o bom êxito do cozinhado e o apuro do caldinho.
Quanto à tal motivação próxima no tempo, trata-se da festinha de mais um aniversário do «Contra-Informação», o popularíssimo programa a que um dia, espero, será atribuído o Prémio Oliveira Salazar destinado ao programa que melhor contribuição houver dado para a aversão à política e aos políticos. Se bem li as notícias doevento, por lá andaram, felizes, muitas das figuras que o programa arrasa de ridículo, se não de calúnias, e por aí de todos os desprestigia, o que aos olhos do público só pode significar que o «Contra-Informação» está cheio de razão. Curiosamente, no passado sábado, falando no Fórum Social Português, José Saramago preconizou o regresso acelerado à política. Lá disse o «Osservatore Romano» em devido tempo: o homem é um comunista inveterado. E, acrescento eu, porque vive em Lanzarote não sabe tudo da contribuição do «Contra-Informação» para o caldinho que, parece-me, está pronto.
A receita é ódio à política e aos políticos, a todos os políticos porque «eles são todos iguais», não é invenção nova: herdámo-la pelo menos do nosso saudosos avôzinho, o doutor Salazar, que sempre fez dela abundante e profícuo uso. A utilização actual não é a única peça da herança salazarista que esta nossa democracia meteu a uso: basta citar os exemplos do horror aos comunistas que em maior ou menor grau é partilhado por todos os partidos reconhecidamente democráticos e a austeridade orçamental que a doutora Manuela pôs no altar com uma devoção tal que dá logo para perceber que aquilo é fé no santo patrono, não é opção decorrente de um exercício de inteligência. Porém, repara-se já agora que o ódio aos políticos se mistura muitas vezes com o ódio aos comunistas. Entende-se: os comunistas falam muito de política mesmo quando não são «políticos». Não é de mais dizer, de resto, que o caldo da antipolítica tem vindo a ser preparado ao longo do tempo para colocar os comunistas, esses politizados sem emenda, numa espécie de ilegalidade vivencial que logo faz tombar sem eles a desconfiança de quem detesta a política, mesmo e sobretudo sem saber do que se trata. Pois, nesta como noutras matérias, na ignorância é que está o ganho do anticomunismo.
Coisas das estatísticas
Perguntar-se-á, porém, a que vem toda esta conversa numa coluna consagrada à televisão. A resposta é que vem muito a propósito. Citemos uma justificação entre muitas e uma motivação próxima no tempo. A justificação é que, creio, está longe de ser por mero acaso que o nosso País vem à cabeça das estatísticas europeias no número de horas que os cidadãos gastam por dia a ver TV e no desapreço que eles mantêm pelos «políticos». E que a televisão portuguesa parece ter descoberto a sua vocação profunda: a detracção da política e dos políticos. É muito certo que a imprensa escrita não lhe fica atrás, antes pelo contrário, mas é claro que em terra de iliteracia aguda a diferença do impacto entre a TV e os jornais é abissal. E, como «isto anda tudo ligado» tal como um dia foi dito, entre emparvecimento intensivo dos telespectadores, sistemática ocultação de quanto seja suspeito de aproximar à cultura (isto é, ao entendimento das coisas e das gentes) e politicofobia, há vínculos fundamentais para o bom êxito do cozinhado e o apuro do caldinho.
Quanto à tal motivação próxima no tempo, trata-se da festinha de mais um aniversário do «Contra-Informação», o popularíssimo programa a que um dia, espero, será atribuído o Prémio Oliveira Salazar destinado ao programa que melhor contribuição houver dado para a aversão à política e aos políticos. Se bem li as notícias doevento, por lá andaram, felizes, muitas das figuras que o programa arrasa de ridículo, se não de calúnias, e por aí de todos os desprestigia, o que aos olhos do público só pode significar que o «Contra-Informação» está cheio de razão. Curiosamente, no passado sábado, falando no Fórum Social Português, José Saramago preconizou o regresso acelerado à política. Lá disse o «Osservatore Romano» em devido tempo: o homem é um comunista inveterado. E, acrescento eu, porque vive em Lanzarote não sabe tudo da contribuição do «Contra-Informação» para o caldinho que, parece-me, está pronto.