A luta contra o neofascismo tende a assumir dimensão planetária

Miguel Urbano Rodrigues
A longo prazo, o sistema de poder dos EUA será confrontado com a derrota do seu projecto de dominação mundial perpétua. O fracasso da estratégia planetária neofascista que determinou a agressão contra o Iraque acentuará a crise económica e política - muito real embora pouco visível - que a grande República atravessa.
A curto prazo, o grupo que controla o poder em Washington extrairá benefícios da capitulação dos governos da União Europeia. A linguagem e o conteúdo do documento aprovado na Cimeira de Atenas não surpreenderam. O telefonema de Chirac a Bush, dias antes, antecipou aquilo que iria passar-se.
O recuo do presidente francês e do chanceler alemão expressou a nova correlação de forças na UE e as pressões de poderosas transnacionais europeias. Na Europa dos 25, a entrada dos países ex-socialistas - embora estes ainda não possam participar nas votações - deixou aberto o caminho à aceitação das teses da submissão.
A contradição entre a atitude dos povos e a dos governantes que pretendem representá-los assume assim facetas explosivas. Enquanto milhões de cidadãos saem às ruas para condenar o genocídio iraquiano e a sangrenta repressão desencadeada pelas forças de ocupação, Chirac e Schroeder, numa metamorfose rapidíssima, trocam amabilidades com Bush e Blair (1). Arquivaram o discurso sobre a guerra ilegítima, violadora da Carta da ONU, aceitam a pata americana sobre o Iraque, declaram-se dispostos a aceitar uma fatia na partilha dos despojos e não reivindicam mais o papel central para a ONU no debate sobre o futuro do país. Olham já para o Iraque como as potências imperiais europeias contemplavam a África no final do século XIX, após a Conferência de Berlim, quando Disraeli e Bismark a haviam tratado como se fora um gigantesco jardim zoológico.
O comportamento dos estadistas caricaturais que, abusivamente, falam por dois grandes povos, o francês e o alemão, contrariando os seus sentimentos e aspirações, deveria, em condições normais, levantar uma onda de críticas na comunicação social.
Não foi o que aconteceu. Na União Europeia o sistema mediático funciona, como nos EUA, sob controlo quase hegemónico de poderosos grupos que no fundamental apoiaram a guerra.
Dos princípios éticos violados pela agressão não escrevem nem falam os editorialistas de serviço nos grandes mass media. A luta do povo iraquiano opondo-se à ocupação, prenunciando, talvez, uma Intifada de novo tipo, não inspira interesse. A violência repressiva das forças ocupantes é noticiada em meia dúzia de linhas pela grande imprensa. O saque do Museu de Arqueologia de Bagdad e a destruição e roubo do seu património ocupam já menos espaço do que os elogios aos directores de grandes museus, com o British Museum, que lamentam o acontecido e oferecem os seus préstimos para ajudar no que for possível... Cadeias de televisão e influentes diários mostram-se sensibilizados com o caso do menino iraquiano, mutilado pelos bombardeamentos, que foi transferido para uma clínica do Koweit. Solidariedades farisaicas nascidas de crimes cometidos são elogiadas como exemplos do humanismo do ocidente; os prisioneiros norte-americanos que regressaram do cativeiro à civilização têm as biografias e os rostos em centenas de jornais que identificam nesses boys paradigmas da grandeza do soldado norte-americano. O mobiliário das residências de Saddam e a vida íntima dos seus parentes (obviamente perversos, cruéis e debochados) tornam-se temas de reportagens especiais. Os videogames sobre a guerra lideram as vendas.
Chovem elogios sobre os políticos que Washington tirou da manga do casaco para os jogar no cenário iraquiano como candidatos democráticos dispostos a contribuir para a felicidade de um «povo libertado». Mas o povo real do Iraque, bombardeado como rebanho de gente contaminada por uma peste maldita, esse não é assunto. Não há estatísticas sobre o número de mortos. Diz-se que foram alguns milhares. Mas a questão é tida por irrelevante, sem interesse.

Vaga de hipocrisia

O petróleo e o seu destino, e a reconstrução polarizam atenções. Os colunistas do Wall Steet Journal e do Financial Times dedicam ao tema analises exaustivas. Os executivos das Sete Irmãs acompanham o debate, emitem declarações prudentes.
A guerra, no fim de contas, aparece-lhes já exclusivamente sob a faceta de uma opção lúcida que permitirá negócios fabulosos.
As nuvens que na Europa prenunciavam tensões políticas e económicas de larga duração com os EUA dissiparam-se a nível de governos. Submissos, Chirac e Schroeder estão impacientes por aprofundar o diálogo. Quanto às Nações Unidas, o seu papel na chamada «reconstrução» não será no fundamental pomo de discórdia. Na Casa Branca já se levanta a hipótese de a ONU ser incumbida de uma tarefa que os EUA exigem, mas não querem, por motivos óbvios, desempenhar: levar aos tribunais os iraquianos que apontem como criminosos de guerra...
A vaga de hipocrisia que dá a volta ao planeta talvez não tenha precedentes. As grandes agências e as cadeias de televisão que dominam o mercado levam aos confins da terra as opiniões dos senhores do mundo transmutadas em verdades universais.
Ora na realidade transmitem uma colossal mentira. O crime aparece já como acto civilizatório.
O mundo regrediu mais de um século. A linguagem dos media do «Ocidente civilizado em conflito com a barbárie de um remoto país islâmico» faz lembrar a da época do fastígio vitoriano, quando a Inglaterra enviava da Índia um exército imperial (com elefantes a puxar os canhões) para depor o imperador etíope que ofendera um representante de Sua Majestade. Teodoro, o monarca, era um déspota sanguinário, mas essa evidência não podia conferir legitimidade à invasão britânica.
O cinismo é o mesmo, embora o poder imperial tenha mudado de mãos e a informação seja hoje instantânea e universal.
Diariamente milhares de artigos e programas de sub intelectuais ao serviço da estratégia de Washington massacram as consciências com análises em que emerge, afinal, a apologia do neofascismo.
É de náusea a minha reacção perante a linha editorial adoptada pela maioria dos grandes jornais dos EUA e da Europa. Com poucas excepções, a matilha de epígonos oscila entre a adesão ao coro de elogios ao vencedor e uma atitude de resignação cristã perante o crime.
Há dias caiu-me nas mãos um exemplar de um jornal português, o «Diário de Notícias». Uma folha decadente de um pequeno país cujo governo assumiu nas vésperas da guerra um papel de vassalagem ao patrocinar nos Açores o encontro de Bush com Blair e Aznar.
Feliz com o desfecho, mais do que esperado da cruzada iraquiana, um tal Luís Delgado alude ao arrependimento de Chirac e Schroeder, «que perderam o pé e a influência num momento em que o sangue frio e os princípios deveriam imperar». O conceito de ética desse imitador de jornalista aparece expresso na conclusão de que «foi preciso ter muita coragem política e capacidade de análise prospectiva para estar no lado certo, no momento em que era necessário».
O desabafo do homem é daqueles que dispensa comentários. É gente como essa que, pelo vasto mundo, constitui a infantaria do exército da propaganda da estratégia do sistema de poder neofascista dos EUA.

O grande medo

Ainda explodiam bombas sobre a terra martirizada do Iraque quando Washington começou a ameaçar a Síria. O ataque foi previamente discutido. Primeiro foi Colin Powell, depois Rumsfeld; finalmente o presidente entrou no jogo.
Inicialmente acusaram o governo de Damasco de não colaborar com os EUA. Sendo elíptica a fórmula, foi dito que fornecera equipamento para o combate nocturno, que estava a admitir quadros iraquianos que atravessavam a fronteira, etc. Posteriormente Bush afirmou que a Síria possuía armas químicas, armas de extermínio maciço. Repetia-se sem imaginação a lenga lenga (desacreditada) que servira para justificar a agressão ao Iraque. A Casa Branca subiu o tom dos ataques e admitiu a hipótese de aplicar sanções à Síria se o seu governo «não colaborasse». Israel logo apoiou a ideia.
A cada desmentido de Damasco, Washington respondia com um acréscimo de agressividade.
O tema ocupou as manchetes. Muitos analistas admitiram que a Síria seria o próximo alvo dos EUA.
Tudo parece indicar que isso, pelo menos nos tempos mais próximos, não ocorrerá. Estaríamos perante uma manobra de guerra psicológica. É significativo que quase simultaneamente ameaças diferentes, mas inquietantes, foram endereçadas ao Irão e a Cuba.
Washington trata de extrair benefícios da sua «vitória» militar. O «destino» do Iraque é apresentado como exemplo do que pode acontecer a países cujos governos não se submetam incondicionalmente a todas as exigências dos EUA.
A mensagem intimidatória não foi endereçada apenas à Síria. Pretendeu também impressionar aliados que não cooperaram directamente na agressão ao Iraque, como a Turquia, que não a aprovaram oficialmente, como o Egipto e a Arábia Saudita, ou assumiram uma atitude ambígua como o Sultanato do Qatar, que foi sede do Quartel General de Tommy Franks, mas tolera no seu território a Al Jazeera, a televisão qatarense de idioma árabe que pela sua independência mais problemas causa a Washington.
O recado, indirectamente, dirigia-se igualmente a outro tipo de interlocutores. Aos aliados europeus considerados recalcitrantes Washington lembrava que hoje são os EUA, exclusivamente, quem manda no mundo. A sua vontade faz a lei, situando-se acima das Nações Unidas.
O «destino» do Iraque, reconduzido a um status colonial, demonstraria a inutilidade de todas as tentativas de resistir à nova ordem imperial norte-americana. Cabia, portanto, aos países do Terceiro Mundo com veleidades de seguir um caminho próprio meditar sobre os acontecimentos que haviam destruído o estado iraquiano após três semanas de resistência.
Os mecanismos do medo funcionam e a Administração Bush tem consciência disso
Mas apenas parcialmente os objectivos da operação intimidatória contra a Síria foram atingidos.
O governo de Damasco defende-se com dignidade de acusações falsas.
Washington não conseguiu resolver os complexos problemas do seu relacionamento com a Turquia e o Egipto, para citar dois casos expressivos. E o motivo dessas dificuldades não está no diálogo com os dirigentes desses países, dispostos a todas as cedências ao poderoso aliado. Quem se opõe à política da vassalagem são os povos turco e egípcio.
Na Casa Branca e no Pentágono sabe-se também que a viragem à direita, capituladora, de Chirac e Schroeder somente contribuirá para reforçar a condenação da política irracional de dominação mundial que o sistema de poder dos EUA tenta impor pela violência. Na Grã Bretanha e na Espanha, a submissão dos governos de Blair e Aznar não impede milhões de pessoas de desautorizarem nas ruas, em manifestações colossais, o alinhamento com Washington.

Cuba e Colômbia
onde o medo não funciona

A eficácia da política de intimidação está longe de ser absoluta.
Na América latina, quatro países preocupam de modo especial Washington, porque o México, um dos gigantes da Região, encontra-se sob controle: o Brasil, a Venezuela, Cuba e a Colômbia.
No caso do primeiro, o governo de Lula tem desenvolvido até agora uma política económica de recorte neoliberal que corresponde aos interesses da administração Bush. Para a Casa Branca trata-se de impedir que as forças de esquerda, integradas na coligação da Frente Popular, consigam alterar o rumo das coisas, arrancando para a política de mudanças sociais prevista pelo próprio programa do PT.
No tocante à Venezuela, Hugo Chavez evita atritos com os EUA, mas mostra-se disposto a levar adiante o projecto da Revolução Bolivariana. Conseguiu derrotar o lock out promovido pela direita que quase paralisou o sector petrolífero durante dois meses. Actuando como sujeito da história, o povo, com o apoio das Forças Armadas, foi o vencedor da crise.
Chavez não está preocupado com a possibilidade do referendo, do qual sairia vencedor e reforçado. Não desconhece que a Revolução Bolivariana, se avançar, levará a uma confrontação inevitável com a potência imperial. Mas simula ignorar as mensagens dirigidas por Washington aos Estados que pretende recolonizar totalmente através da ALCA.
O governo e o povo de Cuba estão conscientes das novas ameaças vindas do Norte. Mas não se submetem. A administração Bush intensificou nas últimas semanas as provocações, coincidindo com a agressão ao Iraque. Jeb Bush, o irmão do presidente, e o embaixador dos EUA na República Dominicana foram explícitos na transmissão de um recado do chefe. Ameaçaram Cuba com uma sorte igual à do Iraque. Simultaneamente, George Bush, segundo o New York Times, prepara novo pacote de sanções contra a Ilha: a suspensão das remessas de dólares para as famílias de cubanos residentes dos EUA; e a supressão dos voos charters entre Miami e Havana.
As manobras de intimidação e chantagem vão prosseguir. Mas não produzirão efeito. A administração norte-americana sabe que a Ilha não capitulará. E não é crível que passe da chantagem e das ameaças a acções de guerra aberta. Girón está presente na memória da equipa do presidente.
Um ataque directo a Cuba teria um preço político inaceitável para os EUA, poderia provocar crises imprevisíveis em alguns países da América Latina e teria um alto custo em vidas norte-americanas.
Nestes dias, precisamente quando o governo Bush intensifica manobras intimidatórias, a pequena Cuba, com a sua firme resistência, chama a atenção para os limites do poder imperial.
Outro motivo de dores de cabeça para Washington é a situação criada na Colômbia. A intervenção militar indirecta é, há muito, ali uma realidade. Bush e o grupo falcoeiro que o rodeia desejariam ir mais longe e passar à intervenção directa com o objectivo de aniquilar as FARC e o ELN. Mas a complexidade da conjuntura paralisa a maquina imperial.

Como intervir, o que fazer?

A US Air Force não poderia bombardear as cidades, controladas pelo governo de Uribe Velez, o presidente amigo, um político neofascista com a qual Bush declara ter «grande empatia».
O inimigo está em todos os Departamentos do país e em parte alguma. É inatingível em combate frontal. As FARC - Exército do Povo constituem uma força avaliada em 18 000 combatentes. Há 38 anos que resistem vitoriosamente a todas as ofensivas desencadeadas para as destruir.
O governo mobilizou recentemente milhares de soldados para tentar recuperar os três agentes gringos da CIA aprisionados pelas FARC. Dois aviões caíram durante as buscas. E nada.
O que bombardear? - repito - perguntam os generais do Pentágono. Não sabem responder.
As campanhas de calúnias contra as FARC e a perseguição movida aos seus dirigentes (que têm a cabeça a prémio) pelas polícias de dezenas de países não conseguem ocultar a evidência: o discurso intimidatório dos EUA não funciona na Colômbia, onde uma heróica guerrilha, com a sua resistência, ilumina fragilidades do sistema imperial.

Lutas em ascensão

Em Mossul, no norte do Iraque, os marines abriram por duas vezes fogo contra manifestantes; saldo da chacina: quase vinte mortos e dezenas de feridos.
No próprio dia em que escrevo, milhares de pessoas protestaram em Bagdad contra a ocupação norte-americana. Os dirigentes títeres impostos pelos invasores são vaiados onde quer que aparecem.
Pelo mundo fora as manifestações contra a escalada norte-americana são diárias. Intelectuais de dezenas de países mobilizam-se para combater o perigo fascista.
A economia americana, cada dia mais parasitária, vai mal, como nos lembra Samir Amin (ver em http:// resistir.info) e essa realidade é difícil de ocultar.
A resistência do povo de Cuba e o combate de organizações revolucionárias como as FARC - EP confirmam que em determinadas circunstâncias e lugares, o poder imperial não encontra soluções para vencer aqueles que se lhe opõem, recusando a submissão.
A luta, muito diversificada nas suas formas, tende a assumir dimensão planetária, tal como a ambição do projecto imperial neofascista.
Não há motivo para se perder a confiança no futuro. A humanidade ultrapassará esta crise.
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(1) Numa entrevista à Revista «Der Spiegel», Schroeder lamenta não ter compreendido a política de guerra de Bush e pede desculpa de tomadas de posição radicais de alguns dos seus ministros.


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Ameaça imperialista contra a humanidade

Pela primeira vez a humanidade uniu-se na defesa da paz, caracterizando a ação norte-americana e britânica como bárbara, terrorista e expansionista do poder imperialista (o economista e sociólogo Samir Amin, em artigo divulgado pela revista Princípios n.º 68, do PC do Brasil, explicita o caráter imperialista e não imperial do projeto norte-americano porque «não se trata de controlar o conjunto das sociedades do planeta para integrá-las a um sistema capitalista coerente, mas sim de apenas apoderar-se de seus recursos»).