Uma biblioteca militante
À memória de
Hélène de Magalhães-Vilhena
Não me recordo do dia em que pela segunda vez entrei em casa de Vasco de Magalhães-Vilhena. A primeira vez, estava o filósofo vivo, recebeu-me com um grupo muito chegado de camaradas todos ligados à Sociedade Portuguesa de Filosofia, a qual tínhamos ajudado a fundar. Recordo-me bem deste encontro, o Vasco estava sentado na sala, no seu cadeirão favorito que, com a demais mobília, tinham trazido de Paris.
Com o seu ar frágil, de sage oriental, falava pausadamente. Já o conhecia das aulas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi meu professor, e onde aprendi, no sentido próprio do termo, os princípios da filosofia marxista-leninista. Não nas vulgatas, que em época revolucionária muitos pseudo-marxistas se arrogavam traduções e explicações fáceis, com a venda assegurada. Aprendi, estudando nos próprios textos dos autores, e, atenção, pois não sabendo russo, não poderia fazer uso de qualquer tradução (francesa ou alemã), mesmo proveniente de editoras internacionais reconhecidamente marxistas... Vasco de Magalhães-Vilhena estava atento aos tradutores... e sabia exactamente a passagem onde estes, na sua opinião tinham «traído» o pensamento.
Foi assim que, no decorrer das aulas, me apercebi da erudição de Vasco de Magalhães-Vilhena que passava não só pela facilidade com que saltava de um tema para outro, estabelecendo as analogias, mas sempre indicando cuidadosamente as fontes, que sempre citava, fossem elas em russo, alemão ou noutro idioma mais conhecido. Quanto às aulas, estas, decorriam com a maior naturalidade e sempre com uma simplicidade notável.
Gostando eu tanto de livros e orgulhando-me de, na altura, ter já uma biblioteca considerável, muitas vezes pensei como seria a biblioteca do Vasco! Como poderia ele reunir, numa interdisciplinaridade tão grande, que me parecia infinita, tantos volumes? Como estariam estes organizados? Como encontraria ele e como organizaria as matérias para as aulas?
Naquela primeira vez que fui a sua casa nada pude ver. A biblioteca de um sábio (deixem que o chame assim ) não é matéria de decoração nem motivo de atracção para quem vem de «visita». Sei que a ela tinham acesso alguns «próximos» dos quais eu ainda não fazia parte.
Quando voltei pela segunda vez já Vasco havia falecido. Entrei como amiga e camarada com a tarefa de «organizar» a sua biblioteca. Coloco organizar entre aspas pois deparei-me com uma grande biblioteca, que ocupava todas as dependências do enorme apartamento, e em que os livros em cada quarto, excepto o de dormir, obedeciam a uma arrumação temática. Todos os quartos estavam repletos de estantes com livros a duas e três fileiras. Foi essa a arrumação, a escolhida em vida pelo Vasco, que resolvi adoptar quando, por fim, procedemos ao levantamento e registo das obras e à sua cotação. Cada letra da cota corresponde ao quarto onde se encontrava a obra... Assim, por exemplo, as obras completas de Lenine (em russo, e em francês ) e a obra de Marx e Engels, nas várias línguas, estavam na Sala A, onde também estava a estante com as obras de António Sérgio e algumas outras que Vasco de Magalhães-Vilhena tinha consultado para escrever os livros e artigos sobre Sérgio.
A biblioteca de Vasco de Magalhães-Vilhena é uma fonte de grande interesse para os estudiosos da Filosofia (de todas as épocas), da filosofia da ciência e das técnicas, e do marxismo.
Guy Besse no artigo de homenagem ao filósofo chamou-lhe «filósofo e combatente»(1). Ao pensar no título a dar a este pequeno escrito lembrei-me que a biblioteca do Vasco é uma autêntica biblioteca militante, todo o seu conhecimento, toda a vivência em Portugal e em Paris bem como pelos vários países por onde viajou, foi dedicada a uma causa, e essa causa todos nós que o conhecemos de perto ou aqueles que leram e estudaram pela sua obra (recordo a geração que estudou pelo Pequeno Manual de Filosofia ) sabemos que foi a causa comunista.
Em 1941, quando escreveu e publicou em Coimbra, em edição do autor, «Unidade da Ciência: introdução a um problema» entende a filosofia como «atitude e disciplina crítica do espírito, actividade de elucidação das ideias»(2). Pelas notas exaustivas que acompanhavam certas leituras e até pelo tipo de sublinhado (a lápis azul ou encarnado) nos apercebemos do debate travado entre o filósofo e a obra lida. São riquíssimas as remissivas a outras obras que «à propos» Vasco recordava na leitura crítica. Quem vier a consultar a biblioteca de Vasco de Magalhães-Vilhena certamente que encontrará grande utilidade nessas notas e interpretará os sublinhados.
A biblioteca, tal como o filósofo militante que a constituiu, trabalharam juntos muitos anos. Outros virão que dela irão fazer uso. A militância marxista de Vasco de Magalhães-Vilhena e da sua biblioteca continuarão a servir o comunismo.
(1) Guy Besse – "Magalhães-Vilhena, filósofo e combatente", Vértice, Lisboa, n.º 66 (1995) , pp.83-88.
(2) V. José Barata-Moura –" Estudos de filosofia portuguesa". Caminho, Lisboa, 1998, p.272-273.