Histórias da guerra e histórias da paz
Durante muito tempo as gigantescas manifestações populares de 15 de Fevereiro hão-de ficar na memória dos povos como marco do reinício de uma longa caminhada. Porque as multidões que vieram para as ruas das cidades do Ocidente não defendiam apenas a Paz como um ideal abstracto. Nem reclamavam privilégios. A sua combatividade traduzia a calma confiança em que é possível construir-se um mundo pacífico e mais justo; e que os povos recusam categoricamente os apelos imperiais à sujeição do mais fraco ao mais forte e a supremacia do lucro privado sobre a moral colectiva. O acontecimento histórico em que participámos oferece assim uma característica invulgar que deve ser valorizada: no século XXI, tal como no século XIX, os povos erguem-se agora e lutam, não apenas quando os seus direitos estão ameaçados mas quando os outros povos seus iguais - mulheres, homens, crianças, trabalhadores - são espezinhados e correm um risco mortal. Há então uma consciência social que ressurge e a noção de que é possível redesenhar-se uma nova ordem internacional fundamentada na luta de classes. É a marca do internacionalismo, longos anos degradada pela fraude da globalização capitalista neoliberal. É a mais clara negação da tese do fim das ideologias. O dobre a finados do fim da História. O desabar das sociedades de mercado.
Um outro ângulo sugere uma observação atenta. A par da defesa da paz, os milhões de manifestantes reclamaram, em 15 de Fevereiro, a substituição de dirigentes do Estado (que, em muitos casos, essa própria multidão contribuíra através do voto para colocar no poder) por outros não identificados mas cuja orientação fosse oposta às políticas belicistas e autoritárias. Aconteceu isso em Portugal e em Espanha, na Grã-Bretanha e nos EUA, em França e na Alemanha, no Japão e na Austrália, etc. Por toda a parte, no mundo ocidental, explodiram os recalcamentos das grandes massas cada vez mais distanciadas das elites dirigentes. Democraticidade não é corrupção. O voto não valida a tirania. A democracia tem conteúdos a respeitar. E esta filosofia da liberdade foi gritada nas ruas.
É certo que, na fase actual, não é nada provável que milhares e milhares de iraquianos escapem à morte e ao sofrimento. O imperialismo é implacável. A lógica da agressão, irreversível. À volta do Iraque e do petróleo investiram-se fabulosas fortunas em negócios sujos, na especulação financeira e na indústria militar. Só o saque da guerra recompensará esses investimentos. Reconheçamos que, em boa medida, também é nossa a responsabilidade dos horrores que se aproximam. Acordámos tarde. Às bombas que vão cair ainda só podemos responder com movimentações e com o recurso a valores humanitários e civilizacionais. Mas, ao menos, que assim seja. Porque esta questão dos valores da humanidade atrai as nossas atenções para a vacuidade da intervenção das igrejas no dramático panorama actual. Tome-se o exemplo das manifestações maciças pela paz e contra a agressão ao Iraque. Muitos milhões de cidadãos livres manifestaram-se nas ruas dos mais poderosos estados ocidentais. Parte desses manifestantes eram crentes das várias confissões. Houve casos de participação de organizações religiosas isoladas. Todavia, os crentes pacifistas representavam-se a si mesmos, como quaisquer outros cidadãos. As organizações católicas diluíam-se entre a multidão Como entidade, a igreja esteve ausente. Apesar de ser acusada de entendimentos com os poderosos e ser-lhe urgente contestar a acusação. Ausência contrária ao que os bispos autoproclamam: somos peritos em humanidade. Ausência agravada por ser público que o Vaticano comanda uma gigantesca rede mundial. Que a doutrina católica tem na gaveta uma proposta de Nova Ordem mundial, com objectivos e metodologias próprios, e que se afirma independente do capitalismo. Que a igreja condena teoricamente a guerra, o lucro selvagem, o imperialismo, a repressão e exploração dos povos, a desequilibrada distribuição da riqueza, o obscurantismo, o armamentismo, a especulação financeira, a marginalização social.
A igreja tinha a obrigação de responder à chamada dos povos. Todos os valores que diz defender estavam presentes no espírito da multidão. Mas os bispos não estavam lá!...