Histórias da guerra e histórias da paz

Jorge Messias

Durante muito tempo as gi­gan­tescas ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares de 15 de Fe­ve­reiro hão-de ficar na me­mória dos povos como marco do rei­nício de uma longa ca­mi­nhada. Porque as mul­ti­dões que vi­eram para as ruas das ci­dades do Oci­dente não de­fen­diam apenas a Paz como um ideal abs­tracto. Nem re­cla­mavam pri­vi­lé­gios. A sua com­ba­ti­vi­dade tra­duzia a calma con­fi­ança em que é pos­sível cons­truir-se um mundo pa­cí­fico e mais justo; e que os povos re­cusam ca­te­go­ri­ca­mente os apelos im­pe­riais à su­jeição do mais fraco ao mais forte e a su­pre­macia do lucro pri­vado sobre a moral co­lec­tiva. O acon­te­ci­mento his­tó­rico em que par­ti­ci­pámos ofe­rece assim uma ca­rac­te­rís­tica in­vulgar que deve ser va­lo­ri­zada: no sé­culo XXI, tal como no sé­culo XIX, os povos er­guem-se agora e lutam, não apenas quando os seus di­reitos estão ame­a­çados mas quando os ou­tros povos seus iguais - mu­lheres, ho­mens, cri­anças, tra­ba­lha­dores - são es­pe­zi­nhados e correm um risco mortal. Há então uma cons­ci­ência so­cial que res­surge e a noção de que é pos­sível re­de­se­nhar-se uma nova ordem in­ter­na­ci­onal fun­da­men­tada na luta de classes. É a marca do in­ter­na­ci­o­na­lismo, longos anos de­gra­dada pela fraude da glo­ba­li­zação ca­pi­ta­lista ne­o­li­beral. É a mais clara ne­gação da tese do fim das ide­o­lo­gias. O dobre a fi­nados do fim da His­tória. O de­sabar das so­ci­e­dades de mer­cado.

Um outro ân­gulo su­gere uma ob­ser­vação atenta. A par da de­fesa da paz, os mi­lhões de ma­ni­fes­tantes re­cla­maram, em 15 de Fe­ve­reiro, a subs­ti­tuição de di­ri­gentes do Es­tado (que, em muitos casos, essa pró­pria mul­tidão con­tri­buíra através do voto para co­locar no poder) por ou­tros não iden­ti­fi­cados mas cuja ori­en­tação fosse oposta às po­lí­ticas be­li­cistas e au­to­ri­tá­rias. Acon­teceu isso em Por­tugal e em Es­panha, na Grã-Bre­tanha e nos EUA, em França e na Ale­manha, no Japão e na Aus­trália, etc. Por toda a parte, no mundo oci­dental, ex­plo­diram os re­cal­ca­mentos das grandes massas cada vez mais dis­tan­ci­adas das elites di­ri­gentes. De­mo­cra­ti­ci­dade não é cor­rupção. O voto não va­lida a ti­rania. A de­mo­cracia tem con­teúdos a res­peitar. E esta fi­lo­sofia da li­ber­dade foi gri­tada nas ruas.

É certo que, na fase ac­tual, não é nada pro­vável que mi­lhares e mi­lhares de ira­qui­anos es­capem à morte e ao so­fri­mento. O im­pe­ri­a­lismo é im­pla­cável. A ló­gica da agressão, ir­re­ver­sível. À volta do Iraque e do pe­tróleo in­ves­tiram-se fa­bu­losas for­tunas em ne­gó­cios sujos, na es­pe­cu­lação fi­nan­ceira e na in­dús­tria mi­litar. Só o saque da guerra re­com­pen­sará esses in­ves­ti­mentos. Re­co­nhe­çamos que, em boa me­dida, também é nossa a res­pon­sa­bi­li­dade dos hor­rores que se apro­ximam. Acor­dámos tarde. Às bombas que vão cair ainda só po­demos res­ponder com mo­vi­men­ta­ções e com o re­curso a va­lores hu­ma­ni­tá­rios e ci­vi­li­za­ci­o­nais. Mas, ao menos, que assim seja. Porque esta questão dos va­lores da hu­ma­ni­dade atrai as nossas aten­ções para a va­cui­dade da in­ter­venção das igrejas no dra­má­tico pa­no­rama ac­tual. Tome-se o exemplo das ma­ni­fes­ta­ções ma­ciças pela paz e contra a agressão ao Iraque. Muitos mi­lhões de ci­da­dãos li­vres ma­ni­fes­taram-se nas ruas dos mais po­de­rosos es­tados oci­den­tais. Parte desses ma­ni­fes­tantes eram crentes das vá­rias con­fis­sões. Houve casos de par­ti­ci­pação de or­ga­ni­za­ções re­li­gi­osas iso­ladas. To­davia, os crentes pa­ci­fistas re­pre­sen­tavam-se a si mesmos, como quais­quer ou­tros ci­da­dãos. As or­ga­ni­za­ções ca­tó­licas di­luíam-se entre a mul­tidão Como en­ti­dade, a igreja es­teve au­sente. Apesar de ser acu­sada de en­ten­di­mentos com os po­de­rosos e ser-lhe ur­gente con­testar a acu­sação. Au­sência con­trária ao que os bispos au­to­pro­clamam: somos pe­ritos em hu­ma­ni­dade. Au­sência agra­vada por ser pú­blico que o Va­ti­cano co­manda uma gi­gan­tesca rede mun­dial. Que a dou­trina ca­tó­lica tem na ga­veta uma pro­posta de Nova Ordem mun­dial, com ob­jec­tivos e me­to­do­lo­gias pró­prios, e que se afirma in­de­pen­dente do ca­pi­ta­lismo. Que a igreja con­dena te­o­ri­ca­mente a guerra, o lucro sel­vagem, o im­pe­ri­a­lismo, a re­pressão e ex­plo­ração dos povos, a de­se­qui­li­brada dis­tri­buição da ri­queza, o obs­cu­ran­tismo, o ar­ma­men­tismo, a es­pe­cu­lação fi­nan­ceira, a mar­gi­na­li­zação so­cial.

A igreja tinha a obri­gação de res­ponder à cha­mada dos povos. Todos os va­lores que diz de­fender es­tavam pre­sentes no es­pí­rito da mul­tidão. Mas os bispos não es­tavam lá!...



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