Informar para depois lutar
O Encontro Nacional do Ensino Superior da JCP tem lugar no próximo sábado, no Centro de Trabalho Vitória, em Lisboa. A propósito da iniciativa falámos com Ana Pato e João Calado, membros do Secretariado da Direcção Central do Ensino Superior.
- Como se pode formar uma contestação sólida às políticas do Governo?
AP- Sobretudo através da organização dos estudantes. O primeiro passo é a consciencialização e é isso que os comunistas têm de estar aptos a fazer junto dos seus colegas e através das associações de estudantes (AEs). Até porque muitos dos estudantes nem têm consciência de que têm direito a um ensino gratuito. O primeiro passo é a consciencialização e a ideia de que um estudante sozinho não faz nada, mas que, se estivermos todos unidos, temos uma capacidade combativa incomparável.
- Como é que isso se consegue?
AP- Através da intervenção nas AEs, as legítimas representantes dos estudantes que têm de defender os seus estudantes. Se o não fazem, alguma coisa está mal. Uma forma de garantir que isso seja feito é através de listas unitárias em que os comunistas possam concorrer...
JC- ... contribuindo para que se forme um movimento associativo mais forte e não tão condicionado por uma partidarização, como tem acontecido nos últimos tempos. Algumas associações de estudantes estão claramente conotadas com os partidos do Governo.
- Como vê a JCP as divisões do movimento associativo?
JC- A JCP intervém no plano unitário, trabalhando com os estudantes para criar movimentos que participem e condicionem nas associações de estudantes.
AP- E que representem os interesses dos estudantes, combatendo todo o tipo de partidarização.
JC- Não podemos aceitar a partidarização que se tem vindo a verificar, com formas de boicote às legítimas reivindicações dos estudantes. Não são só as AEs que se mantêm caladas, mas as que impedem os estudantes que querem partir para a luta.
AP- Outra forma legítima de luta é os próprios estudantes organizarem-se em grupos informais, sobretudo quando a AE não dá resposta. As reuniões gerais de alunos (RGAs) são outra grande arma para discutir os ataques do Governo.
JC- As AEs, ficando vinculadas a uma decisão de uma RGA, formalmente é muito complicado não assumir a vontade dos estudantes.
AP- No concreto esta luta faz-se na rua, em acções de luta de massas. Os estudantes têm de impedir esta política, porque são os nossos direitos que estão em causa, sobretudo os dos mais desfavorecidos.
- Qual é a diferença entre essa partidarização e a influência da JCP nas AEs?
JC- A diferença é que os comunistas discutem com qualquer estudante que queira ver concretizados determinados objectivos para o ensino superior. Um projecto que integre comunistas não está só a discutir a festa que se vai realizar daí a duas semanas. Discute as políticas educativas gerais e os problemas concretos da escola e as medidas que esse conjunto de indivíduos vai tomar.
AP- É uma diferença tão grande que a participação dos comunistas na AEs pode ser uma garantia da não partidarização. A presença dos comunistas garante a representação dos interesses dos estudantes. Nas escolas onde os comunistas têm mais influência é onde os estudantes estão mais activos na defesa dos seus interesses.
JC- ... e são mais chamados à discussão dos problemas e dos objectivos para o ensino superior.
- Há uns anos lutava-se contra a existência de propinas, hoje contesta-se o aumento do seu valor? Houve um retrocesso reivindicativo do movimento associativo?
JC- Mesmo no auge da luta contra as propinas, o mote foi sempre o «não» ao aumento das propinas. Quando a questão das propinas se colocou, pagava-se uma propina de 1760 escudos, basicamente para pagar os impressos. O que estava em causa era o aumento das propinas, ao contrário do que está estipulado na Constituição, que define um ensino progressivamente gratuito. Era o início da privatização do ensino e da desresponsabilização do Estado.
Por uma série de factores – entre eles, a partidarização do movimento associativo – houve este boicote à fomentação da luta. Mas, com todas as medidas do Governo e com uma intervenção forte da JCP nas escolas em movimentos informais, há todas as condições objectivas para partir para uma grande luta de massas, não só contra a questão das propinas, mas também contra os cortes orçamentais, a diminuição da autonomia e da participação democrática dos estudantes nas escolas e os ataques à acção social escolar.
Insucesso escolar
não é responsabilidade exclusiva dos alunos
- O novo reitor da Universidade de Coimbra está contra o aumento das propinas. Esta posição é partilhada por outros reitores, no seguimento de diversas críticas ao financiamento do ensino superior. Que importância têm, de facto, as posições dos professores, dos directores e dos reitores?
JC- É muito importante mais um reitor assumir publicamente esta posição. Normalmente, no Conselho de Reitores apenas um remava contra a maré, o reitor da Universidade de Lisboa. Há uma contestação tímida aos cortes orçamentais. No Orçamento de Estado, tanto no ano passado e como este ano, viu-se que os reitores acabaram por ceder às pressões do ministro e do Governo, com umas pequenas migalhas. Pode ser um reforço das posições que o Conselho de Reitores tem vindo a assumir.
AP- Este é um dado muito importante, mas não substitui em nada a luta dos estudantes.
- Uma posição dessas terá alguma influência na política do Governo?
JC- É mais uma forma de pressão. Implicações práticas nas políticas educativas só são possíveis quando houver um grande movimento contra as medidas do Governo, na área dos professores e na dos funcionários. Mas a acção dos estudantes é a mais importante, porque são os que mais sofrem com a política que está a ser implementada.
- O livro «Ensino superior: uma visão estratégica para a próxima década» foi apoiado pelo ministro Pedro Lynce. Começa agora a pôr em prática as diversas medidas recomendadas?
JC- Tenho ideia de que o livro é uma justificação para permitir uma discussão que vá nesse sentido. Ou seja, pode dizer-se que há uma discussão na sociedade que se encaminha para aí.
AP- É uma forma enviesada de justificar a política do Governo. Um livro não confere autoridade às políticas neoliberais.
- Na semana passada, o ministro anunciou a intenção das universidades privadas poderem criar, alterar, suspender e extinguir cursos sem autorização do Ministério do Ensino Superior. Esta é uma das propostas incluídas no livro.
JC- Vai ao encontro da política que vem empurrando para o ensino privado o ónus de formar os estudantes, retirando ao Governo e ao Estado a responsabilidade básica de formação social e cultural.
AP- O ensino privado só pode estar em busca do lucro e a lógica capitalista é incompatível com o interesse do País.
- O ministro considera que a medida «mais justa» para combater o insucesso escolar é prescrever os alunos que reprovem várias vezes. A solução para este problema passa de alguma forma por aqui?
AP- Para já, parte de uma premissa errada: atribui ao estudante toda a responsabilidade do insucesso escolar. Muitos são os factores, nomeadamente o facto de muitos terem de trabalhar para pagar a frequência nas aulas. Quanto mais tiver de pagar, mais terá de trabalhar. É uma bola de neve.
JC- As condições das instituições, as turmas sobrelotadas, a falta de formação dos professores, o facto da formação pedagógica dos professores não existir e não contar para o avanço na carreira são aspectos que impedem o sucesso escolar. Deve fazer-se uma análise dos factores que contribuem para o insucesso escolar e tomar medidas de combate adequadas às conclusões. Outras medidas não fazem sentido e não são aceitáveis.
- O Governo prevê que tendencialmente os estudantes pagarão o custo real dos seus estudos. Qual será então a diferença entre ensino público e privado?
AP- Aí está uma boa pergunta. Podíamos perguntar ao senhor ministro.
JC- Tudo está encaminhado para uma privatização efectiva das instituições. Estão a ser criadas as condições para, na gestão, deixar de ser a escola a gerir os seus recursos para passar a haver um conjunto de gestores, como se está a tentar implementar na saúde.
AP- Nós elegemos quem é obrigado a gerir a educação pública e não os senhores do ensino privado.
Falta de investimento na educação
traz atraso para o País
«A consequência do desinvestimento da educação é o atraso cultural e tecnológico do País. A educação não pode ser entendida como uma coisa que dê lucro. É um investimento a longo prazo para o futuro. Só jovens com formação é que são capazes de desenvolver o País», afirma Ana Pato.
Portugal é o país da União Europeia que menos investe na educação, com menor taxa de licenciados e onde as famílias mais pagam para ter os seus filhos a estudar. «Pagamos a nossa formação duas vezes: através dos impostos e através das propinas, das taxas e dos emolumentos», diz.
Os cortes nos orçamentos têm implicações na qualidade do ensino. «Cursos com uma formação mais prática terão de passar a ter uma formação mais teórica. Os professores que têm uma contratualização precária serão dispensados. Depois há o reverso da medalha: à falta de recursos, as instituições têm de ir buscar dinheiro a algum lado e os estudantes são uma fonte de receitas potencial», sublinha João Calado.
Educação para poucos
Para o dirigente da JCP, o Governo aposta na elitização da educação: «O acesso ao ensino superior é mais difícil, porque o estudante tem de pagar uma propina maior, porque não tem acesso à bolsa ou porque é trabalhador-estudante e não há curso nocturno.»
Outras questões passam pela progressiva privatização das instituições e pelo auto-financiamento dos estudantes com o cheque-ensino. «O estudante vai para onde quer, o que implica o aparecimento de rankins de escolas e a possibilidade do Estado financiar directamente o ensino privado. Há uma série de medidas que claramente tenta canalizar os estudantes para as privadas, como o fim dos cursos nocturnos», acusa.
Outra medida criticada pela JCP é o estudante elegível, em que o estudante paga a propina consoante chumbe ou não. «O trabalhador-estudante não está ao mesmo nível daquele que só estuda. É natural que não tenha o mesmo aproveitamento. É obrigado a trabalhar para estudar, tem menor aproveitamento e por isso paga mais propinas e tem de trabalhar mais. É um incentivo ao abandono escolar», considera Ana Pato.
Os cortes na acção social escolar e o Regime Jurídico para a Qualidade e Desenvolvimento do Ensino Superior são igualmente contestados pela JCP. «Este Governo teve o descaramento de atribuir uma verba em termos numéricos inferior à do ano anterior. Até então, os orçamentos, do ponto de vista numérico, eram superiores, embora se verificasse que havia cortes, face à actualização dos salários e à inflação», afirma João Calado.
Aprofundar o debate e preparar os estudantes
O objectivo fundamental do Encontro Nacional do Ensino Superior é discutir os problemas do ensino superior e a forma de intervenção dos comunistas. Outras questões estarão em cima da mesa como o reforço da intervenção unitária, as medidas para potenciar a luta dos estudantes e a sua preparação para o combate político e ideológico nas escolas.
«Os estudantes comunistas e os colectivos da JCP assumem um papel insubstituível nas escolas, não só na intervenção unitária, mas também enquanto JCP. Esta intervenção não pode ser desprezada. Os comunistas têm de estar na linha da frente», salienta Ana Pato, acrescentando que o encontro debaterá igualmente a melhor maneira de influenciar as associações de estudantes, os grupos informais e mobilizar a organização.
No dia do encontro inicia-se uma campanha de contacto, com a distribuição de um documento em forma de jornal e a recolha de um abaixo-assinado por uma educação pública, gratuita e de qualidade. As assinaturas serão entregues a 24 de Março, no Dia do Estudante, ao ministro da Ciência e do Ensino Superior. Nos próximos meses terão ainda lugar dez debates com dez temas diferentes, a realizar em vários pontos do País.
Como diz Ana Pato, são «os comunistas a intervir directamente na consciencialização e mobilização dos estudantes».