Os «políticos» da Santa Sé
Embora parte do essencial fique por dizer, importa não passar em silêncio a recente nota pastoral que, a partir da sua promulgação pontifícia (21.12.O2) entrou na doutrina social da igreja. A nota é endereçada aos bispos e, de modo especial, «aos políticos católicos e a todos os fiéis leigos chamados a tomar parte na vida pública das sociedades democráticas». O documento expressa as mais responsáveis orientações do Vaticano, visto ter a assinatura do cardeal Joseph Ratzinger, estar rubricada pelo arcebispo Tarcisio Bertone e ter sido promulgado por João Paulo II, Sumo Pontífice. Trata-se de um autêntico catecismo para uso dos «políticos» da igreja. Texto extenso mas com inegável interesse. Algumas das suas proposições irrefutáveis são, em resumo, as seguintes.
«Desde os primeiros séculos que os cristãos participam na vida pública como cidadãos.» Uma vez revelada esta evidência (que ninguém contesta ) sobe-se um primeiro degrau: «O homem não pode separar-se de Deus nem a política da moral... guiados pela consciência cristã e em conformidade com os seus valores, os fiéis leigos desempenham também a função que lhes é própria de animar cristãmente a ordem temporal... O inteiro ensinamento da Igreja nesta matéria... (está contido)... no Catecismo da Igreja Católica.» Fica, portanto, bem claro que a liberdade de decisão do político católico deve condicionar-se à leitura que a hierarquia fizer de cada caso concreto. Depois, uma vez recordado o magistério político, a nota define o universo temporal em que decorre a intervenção do leigo cristão. As tintas usadas são cor-de-rosa. «Nas sociedades democráticas actuais, todos participam na gestão da coisa pública, num clima de verdadeira liberdade...». O que é evidentemente falso. Derivando, em seguida, para exemplos mais concretos, a carta da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício) esclarece que «há uma pluralidade de partidos dentro dos quais os católicos podem exercer a sua militância para praticarem, sobretudo através das representações parlamentares (o sublinhado é nosso), o seu direito-dever na construção da vida civil do seu País»; bem como: «A tutela dos direitos da pessoa humana é condição necessária para que os cidadãos, individualmente ou em grupo (o sublinhado é nosso), possam participar activamente na vida e na gestão da coisa pública.» Depois,antiga como é, a tradição católica não pode fugir, mesmo no século XXI, aos vícios da censura prévia. O secular «index» continua vivo e funcional. Afirma a Santa Sé que «a consciência moral bem formada não permite a ninguém favorecer com o próprio voto a actuação de um programa político ou de uma só lei onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos». E enumera essas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis: as leis civis relativas ao aborto e à eutanásia; aos direitos do embrião humana; à tutela e promoção da família fundada no matrimónio monogâmico, entre pessoas de sexos diferentes e sob protecção legal em matéria de divórcio; à liberdade de educação reconhecida aos pais, em relação aos filhos; à protecção social de menores, assim como às modernas formas de escravidão (droga, prostituição, etc.); à liberdade religiosa ou aos meios de progressão para uma economia ao serviço da pessoa e do bem comum; finalmente, aos planeamentos a favor da paz: a paz é sempre «fruto da justiça e efeito da caridade». A nota doutrinal conclui com uma profissão de fé: «Queiram os fiéis poder exercer as suas actividades terrenas unindo numa síntese vital todos os esforços humanos, familiares, profissionais, científicos e técnicos, com os valores religiosos sob cuja altíssima hierarquia tudo coopera para a glória de Deus» (o sublinhado é nosso).
Estas assumidas posições da Cúria Romana deveriam merecer reflexão por parte de todos os dirigentes políticos, independentemente dos níveis em que exerçam as suas funções ou das nostalgias que os possam prender a universos religiosos virtuais. Na certeza de que nunca a humanidade enfrentou tão graves perigos como os actuais.
O que reduz drasticamente a margem de erro que podemos permitir à nossa acção.