O pintor do século XX
...Derramou-se de ternura mas não faltou à verdade:
esternutou quando polén de mostarda lhe chegou ao nariz.
E soube guardar as distâncias:
não tomar (não tomar-se ) demasiado a sério...
Céptico activo, olhou tudo até ao coração, até à delilusão
- e tudo recuperou com feroz ironia.
Alexandre O’Neill
O mundo girava à volta do seu olhar que, com uma ironia, subtil, delicada mas perfurante, descascava, camada a camada, como se fosse dono de todo o tempo da vida, o que o aproximava do pulsar do quotidiano que foi desde sempre e para sempre o tema central da sua pintura.
Sá Nogueira, desde as suas primeiras pinturas no final dos anos 40 até às últimas que estava a produzir já neste século, foi incessantemente um pintor moderno que, deliberada e conscientemente, se afastava das polémicas entre as diversas correntes artísticas para se encontrar em diálogo com o passado e o presente.Este entendimento da prática artística permite-lhe a imensa liberdade de ir descobrindo a pintura dos outros para incorporar ,sem rupturas ,os seus elementos essenciais no seu próprio universo. Inicialmente Bonnard , Modigliani, um Bernardo Marques ainda próximo e um ainda mais próximo Hogan, transparecem nos interiores dos cafés, nos retratos e pseudo-retratos, nos jardins e nas pequenas praças, numa Lisboa de espaços sobrantes que vai transpondo para a tela com uma grande riqueza cromática e um extremo rigor, só possível em quem dominava o desenho como muito poucos e raros o conseguem.
E quando foi para Londres aprofundar conhecimentos e saberes, Sá Nogueira «descobre» a colagem, a fotografia e a fotomontagem enquanto materiais essenciais na prática da pintura, e outros artistas, Kurt Schwitters, Richard Hamilton, Larry Rivers e Robert Rauschenberg e Paula Rego e Maria Velez, juntam-se à galeria dos artistas com quem questionava no silêncio do seu atelier o desejo constante de renovar e actualizar a sua pintura .
É um longo percurso que foi documentado em 1998 numa exposição retrospectiva no Museu do Chiado onde, através da obra de Sá Nogueira, se entendem as mudanças fundamentais da pintura em Portugal e de como na obra deste artista excepcional tudo se transforma e nada se perde.
Mas a morte recente de Sá Nogueira, se deixa um enorme vazio nas artes plásticas portuguesas, faz perder um extraordinário mestre que sem impor nada conseguia impor tudo, que sem «explicar» nada conseguia explicar tudo, limpando os olhares de quem o ouvia para uma lucidez ácida e optimista que era a sua, mas que emprestava com uma simplicidade desarmante.
Que conseguia explicar que só um imenso e continuado trabalho com os lápis ou os pincéis podia reproduzir o que com a cabeça, na mesa da anatomia da vida em toda a sua dimensão histórica e social, se construía, porque só esse trabalho quase operário dava à mão a capacidade de ser fiel ao pensamento. E explicava tudo isto, que faria qualquer um desistir, com uma tal humanidade e ternura, com tal amor à pintura e à vida que quem estava prestes a renunciar esmagado pela perspectiva de nunca alcançar aquela perícia essencial, entendia que tinha o privilégio de ter ali a mão que o ajudava a vencer perplexidades e temores, a mão de alguém para quem estar e fazer eram dois percursos coincidentes tal como Rolando Sá Nogueira esclarecia em entrevista a um jornal: «Não tenho outra atitude que não seja afirmar aquilo que faço como modo de estar, revelando assim a minha capacidade de resolução, e ela passa pelo mistério da minha própria existência, por aquilo que me acompanha no dia-a-dia, o que tem ainda a ver com a minha profissão de professor.» E esta actividade de professor ,justamente lembrada por todos os que ensinou, primeiro na SNBA - Sociedade Nacional de Belas Artes - e depois na Escola Superior de Belas Artes do Porto, era assumida como fazendo parte integrante da sua prática de pintor: «Tenho de me dividir pelas duas actividades: pintura e ensino. Esforço-me para que elas não sejam antagónicas. Quer dizer que as minhas preocupações na pintura fazem parte daquilo que quero transmitir aos alunos, tanto quanto possível.»A pintura de Sá Nogueira é a pintura do nosso século XX, habitada pelos nossos medos, as nossas esperanças, os pequenos gestos que fazem parte do quotidiano, as pessoas e os objectos que nos são familiares, afinal com tudo aquilo com que se fabrica a vida.