Lula fez a ponte entre os fóruns de Porto Alegre e Davos

A fome não pode esperar

O presidente do Brasil propôs domingo, em Davos a criação de um fundo internacional para o combate à miséria e à fome nos países do terceiro mundo.

«Não basta que os valores do humanismo sejam proclamados»

Num discurso desassombrado na reunião anual do Fórum Económico Mundial, em que retomou as questões que havia abordado anteriormente no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Lula pôs em causa o «Deus mercado», o único reconhecido em Davos, e lembrou que «a liberdade de mercado pressupõe, antes de tudo, a liberdade e a segurança dos cidadãos».

Tomando como exemplo a situação no seu país, uma das maiores economias industriais do planeta que convive com enormes desigualdades sociais, Lula lembrou que «a face mais visível dessas disparidades são os mais de 45 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza». O lado mais dramático desta realidade, disse, é a fome, que atinge dezenas de milhões de pessoas, pelo que o seu governo fez do combate à fome a sua prioridade.

«Combater a fome não é apenas tarefa do governo, mas de toda a sociedade», afirmou o presidente do Brasil, e a sua «erradicação da fome pressupõe transformações estruturais, exige a criação de empregos dignos, mais e melhores investimentos, aumento substancial da poupança interna, expansão dos mercados no país e no exterior, saúde e educação de qualidade, desenvolvimento cultural, científico e tecnológico». Para isso, o Brasil está a trabalhar para promover a reforma agrária e retomar o crescimento económico, a estabelecer regras económicas claras, estáveis e transparentes, e a combater a corrupção.

No entanto, como disse Lula, todo este esforço que o Brasil está a fazer «não atingirá plenamente os seus objectivos sem mudanças importantes na ordem económica mundial». «Queremos o livre comércio, mas um livre comércio que se caracterize pela reciprocidade», afirmou, fazendo notar que «de nada valerá o esforço exportador que venhamos a desenvolver se os países ricos continuarem a pregar o livre comércio e a praticar o proteccionismo».

 

Um longo caminho

 

Advertindo que as mudanças da ordem económica mundial devem passar por uma «maior disciplina no fluxo de capitais» e que a comunidade internacional terá de dar a sua contribuição para «impedir a evasão ilegal de recursos», factores decisivos para o «combate ao terrorismo e à delinquência internacionais», Lula lembrou que «a construção de uma nova ordem económica internacional, mais justa e democrática, não é somente um acto de generosidade, mas, também, e principalmente, uma atitude de inteligência política».

O presidente brasileiro advogou ainda a necessidade de uma «nova ética», sublinhando que «não basta que os valores do humanismo sejam proclamados, é preciso que eles prevaleçam nas relações entre os países e os povos».

A terminar a sua intervenção, Lula da Silva convidou os participantes do Fórum de Davos «a olhar o mundo com outros olhos», pondo o ênfase na necessidade de «reconstruir a ordem económica mundial para atender aos anseios dos milhões de pessoas que vivem à margem dos extraordinários progressos científicos e tecnológicos que o ser humano foi capaz de produzir».

Neste contexto, Lula apelou «para que as descobertas científicas sejam universalizadas para que possam ser aproveitadas em todos os países do mundo» e propôs «a formação de um fundo internacional para o combate à miséria e à fome nos países do terceiro mundo, constituído pelos países do G-7 e estimulado pelos grandes investidores internacionais».

Para o presidente do Brasil, uma tal medida é indispensável «porque é longo o caminho para a construção de um mundo mais justo e a fome não pode esperar».


Frases para reflectir

 

«Mais de dez anos após a derrubada do Muro de Berlim, ainda persistem “muros” que separam os que comem dos famintos, os que têm trabalho dos desempregados, os que moram dignamente dos que vivem na rua ou em miseráveis favelas, os que têm acesso à educação e ao acervo cultural da humanidade dos que vivem mergulhados no analfabetismo e na mais absoluta alienação.»

«A paz não é só um objectivo moral. É, também, um imperativo de racionalidade. Por isso, defendemos que as controvérsias sejam solucionadas por vias pacíficas e sob a égide das Nações Unidas. É necessário admitir que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se desenvolvem o fanatismo e a intolerância.»

«A mudança que buscamos não é para um grupo social, político ou ideológico. Ela beneficiará mais os desprotegidos, os humilhados, os ofendidos e os que, agora, vêem com esperança a possibilidade de redenção pessoal e colectiva. Esta é uma causa de todos. Ela é universal por excelência.»

«Como o mais extenso e o mais industrializado país do hemisfério sul, o Brasil sente-se no direito e no dever de dirigir aos participantes do Fórum de Davos um apelo ao bom senso.»

«O meu maior desejo é que a esperança que venceu o medo, no meu país, também contribua para vencê-lo em todo o mundo. Precisamos, urgentemente, de nos unir em torno de um pacto mundial pela paz e contra a fome.»


Fórum Social Mundial
Marcha pela paz

 

Cerca de 100 000 pessoas marcharam em Porto Alegre no dia 24 em protesto contra uma guerra no Golfo e em defesa da paz. «Basta de bombas, basta de ataques, o imperialismo fora do Iraque» foi uma das palavras de ordem mais gritadas pelos manifestantes durante as duas horas que durou a marcha através do centro da cidade.

O Fórum Social Mundial, cuja terceira edição decorreu de 23 a 27 de Janeiro em Porto Alegre, reúne representantes de sindicatos, partidos de esquerda, Organizações Não Governamentais (ONGs) e movimentos sociais de todo o mundo para discutir alternativas à globalização económica e ao neoliberalismo.

Concebido com um contraponto ao Fórum Económico Mundial que reuniu em Davos, no mesmo período, representantes de empresas, bancos, governos e organismos multilaterais, o FSM foi ainda o espaço privilegiado para diversas iniciativas levadas a cabo por organizações de distintas organizações. Neste contexto, a delegação do PCP ao FSM, integrada por Jorge Cordeiro e Albano Nunes, respectivamente da Comissão Política e do Secretariado do PCP, participou no Fórum das Autoridades Locais pela Inclusão Social e no Seminário Internacional «O novo Brasil no contexto mundial».

Um espaço de debate

No Fórum das Autoridades Locais, em que para além de Jorge Cordeiro participaram João Geraldes, Rogério de Brito, Ana Teresa Vicente e Carlos Sousa, em representação dos municípios de maioria da CDU de Almada, Alcácer do Sal, Palmela e Setúbal, o debate centrou-se nas consequências das políticas neoliberais nas cidades, em particular as resultantes da privatização dos serviços públicos e do aumento da pobreza e da exclusão social.

Na declaração aprovada no final dos trabalhos sublinha-se a importância das autoridades locais na construção de uma cultura de paz, na defesa dos direitos sociais e na defesa do serviço público, tendo sido incluída uma referência solidária de apoio ao poder legítimo da Venezuela e ao seu presidente, Hugo Chávez.

No Seminário Internacional, Albano Nunes interveio no painel «Por um mundo multipolar e mais solidário», em que também participaram Samir Amin (Egipto), Paulo Vizentini (Brasil) e Sitaram Yechuri (Índia).

Entretanto, o Conselho Internacional (CI) do Fórum Social Mundial, que esteve reunido nos dias 21 e 22 de Janeiro, decidiu que o encontro de 2004 será na Índia. Entre outros factores, a decisão visa facilitar a participação de entidades e organizações asiáticas e africanas no FSM, cujo acesso aos encontros de Porto Alegre é prejudicado por dificuldades financeiras e pela distância.
O CI decidiu ainda que os encontros do
FSM deixarão de estar vinculados às datas dos encontros do Fórum Económico Mundial de Davos. Caso os dois eventos ocorram em datas diferentes, por ocasião do Fórum de Davos, as organizações do FSM realizarão pelo mundo todo grandes manifestações contra a guerra.

 

Os números do FSM 2003


O Fórum Social Mundial 2003 reuniu cerca de 100 mil participantes entre delegados, observadores, jornalistas e activistas de todo o mundo.
A organização registrou um total de 20763 delegados, representando 5717 organizações de 156 países.
Credenciaram-se para a cobertura do evento 4094 jornalistas de 51 países.
Durante o evento, que
contou com o trabalho de cerca de 650 voluntários, realizaram-se 1286 oficinas.
O Acampamento da Juventude abrigou cerca de 25 mil pessoas, das quais mais de 19 mil foram credenciadas como representantes de cerca de 700 colectivos.
A organização do FSM 2003 teve um custo directo total de 3,485 milhões de dólares, sem contar com os custos indirectos com pessoal e hospedagem de conferencistas assumidos pela Prefeitura de Porto Alegre.
O volume de dinheiro gerado pelo Fórum é, no entanto, muito maior. Os organizadores calculam que os 100 mil participantes movimentaram, no mínimo, 20 milhões de dólares, entre despesas de transporte, hospedagem e alimentação.



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