Histórias de comboios para a Alemanha nazi

J. M. Costa Feijão

Alguns novéis prestidigitadores da historiografia portuguesa do século XX prosseguem a académica tarefa de branqueamento do regime fascista, ora exaltando a «neutralidade de Salazar» na Segunda Guerra Mundial, ora negando o seu flagrante alinhamento com a Alemanha nazi, chegando alguns a construir buriladas teses sobre a postura antigermanófila do chamado «Estado Novo».

Uma breve leitura da imprensa diária da época bastaria para lançar por terra tamanha cabala, mas se consultarmos os telegramas trocados entre Von Huene, embaixador nazi em Lisboa, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, entre 1941 e 1944, ou recuperarmos o testemunho de quantos viveram a época, cedo daremos conta duma realidade bem diversa da que os actuais cronistas nos narram desse passado recente.

Foram tempos plúmbeos, duma propaganda germanófila difundida pelas antenas da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português e da Rádio Renascença, animada por palestrantes como o legionário Costa Leite Lumbrales, o Luís Supico, o Domingos Mascarenhas & C.ª.

Foi uma época tão «neutral» que os antifascistas ao sintonizarem a BBC se rodeavam de mil cautelas, para que a vizinhança não desse conta da escuta das notícias difundidas por Londres. O não alinhamento do regime era tão assumido que qualquer cidadão portador dum emblema da britânica RAF era alvo de provocações ou sujeito a «esclarecimentos» na polícia.

Contudo, o jet-set da época não perdia uma jornada de confraternização na Sociedade Zikermann, agente alemão de importação para os óleos, azeite e bagaço de azeitona portugueses, saqueados a um povo famélico e a quem o regime justificava as dificuldades como resultantes da guerra, enquanto escamoteava o volume e a diversidade da exportação de géneros e matérias-primas para a Alemanha hitleriana, num activo apoio logístico à máquina militar germânica.

Centenas de comboios rumaram à fronteira de Vilar Formoso e Beirã, transportando para o Reich milhares de toneladas de farinha, conservas de peixe, feijão, azeite, minérios, etc., avalizadas pela «Câmara dos Agentes Transitários», mancomunada com Bruno Lesser, delegado do governo nazi para os transportes ferroviários e rodoviários, instalado na Rua Cais de Santarém, n.º 32 - 1º, em Lisboa.

Mas, se dúvidas restassem sobre a trama de cumplicidades, leia-se o teor de parte dum telegrama para Berlim, do embaixador Huene, em 11 de Janeiro de 1943:

«1 – A Comissão Metalúrgica abolirá, a partir de 1 de Janeiro, a entrega obrigatória de 25% da produção das minas Lisbonenses, Castelos e Trancos e de futuro incluirá também, não oficialmente, estas sociedades no sector alemão de produção.

3 – O governo português não dará a conhecer oficialmente estas medidas e espera idêntica confidência da parte alemã.

4 – A Comissão Metalúrgica porá à disposição da Alemanha uma certa quantidade de concentrados de volfrâmio das reservas de minério armazenadas até hoje e, para já, no mês de Janeiro, fornecer-nos-á 33 toneladas.»

 

O Marques da Mealhada

 

É nesta conjuntura que o PCP, através do seu órgão «Avante!», inicia em Agosto de 1941 a denuncia do conchavo salazarista, franquista e hitleriano, mobilizando as massas populares para a resistência ao esbulho de bens alimentares de que era alvo. Das muitas lutas e levantamentos populares que eclodiram pelo país nos ocuparemos noutra ocasião, detendo-nos, por ora, na acção dum ferroviário e militante comunista, factor do caminho de ferro de 2.ª classe, colocado na estação da Pampilhosa, onde a linha do Norte entronca com a linha da Beira Alta – Vilar Formoso.

Como tarefa política o camarada recebera instruções do Partido no sentido de dificultar o tráfego internacional de mercadorias, tirando proveito do troço de via única até à fronteira, gerando bloqueios na circulação ferroviária mas não causando vítimas.

Tendo conhecimento prévio do horário nocturno das composições de mercadorias que rumavam à fronteira e que obrigatoriamente estacionavam na Pampilhosa, o camarada, com os devidos cuidados conspirativos, procedia profissionalmente à revisão dos rodados do comboio e respectivo sistema de frenagem, fazendo-se acompanhar do martelo, da lanterna e duma almotolia lubrificadora. Só que, por vezes, o óleo era substituído por areia fina e... passados alguns quilómetros de marcha, os comboios quedavam-se alguns dias na via de circulação, principalmente se fossem carregados de minério para o Reich.

A frequência das avarias cedo despertaria a atenção da polícia política (PVDE) que destacou para a Pampilhosa os respectivos agentes com quem o nosso homem passou a jogar às cartas até altas horas da noite. As acções de sabotagem naturalmente diminuíram, mas prosseguiram até 1944. Contudo, o factor não se quedou inactivo e urdiu um novo esquema de actuação.

Sempre que recebia um volume de panfletos para distribuir, reservava uns quantos que cuidadosamente colocava sob uma pedrinha no tejadilho da última carruagem do comboio que estivesse estacionado em linha de desvio e, quando pela manhã o rápido Lisboa-Porto passava na Pampilhosa, ele e os pides assistiam no cais da estação à nuvem de comunicados e apelos do PCP esvoaçando na ventania que do rápido gerava.

Luís Bernardino Marques – «O Marques da Mealhada», conhecido entre os muitos camaradas que ele apoiou e acoitou nos duros anos de clandestinidade, foi um ferroviário militante que com engenho, ousadia e a seu modo, levou à prática a palavra de ordem do Partido no alvor dos anos 40:

«Avante pela sabotagem e aniquilamento do auxílio prestado pelo Governo de Salazar aos inimigos do progresso e da humanidade trabalhadora!



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