«Que fizemos nós dos nossos ideais?»

Jorge Messias

Na Missa do Galo de 2002, celebrada na Sé de Lisboa, D. José Policarpo proferiu uma cuidada homilia que girou em torno desta ideia central: «Que fizemos nós dos nossos ideais?» Como peça de oratória, o sermão não desmereceu daquilo que seria de aguardar do Magno Chanceler da Universidade de Lisboa. Concisa, directa, mas rica no pormenor. Como lhe competia, o Patriarca denunciou e anunciou. Denunciou escândalos da vida nacional - aliás já conhecidos de todos! - tais como a pedofilia, a ganância do lucro, o prazer alcançado a qualquer preço, o fosso crescente entre pobres e ricos, a sofreguidão de domínio e de poder, a fuga aos deveres perante os outros e para com o Estado, a exploração dos pobres e desprotegidos, a amoralidade da guerra das audiências, etc. Entrou, mesmo, na análise dos problemas internacionais. Falou, então, no terrorismo do 11 de Novembro de 2001, no Afeganistão, nos atentados de Bali, no «drama da Palestina», no fundamentalismo religioso e consequente aproveitamento político, bem como noutros casos mais que não sei citar visto não ter estado presente em qualquer Missa do Galo. Anunciou propostas éticas - aliás também bem conhecidas - como alternativa às soluções políticas, proposições convergentes num só princípio teologal: o da mudança prévia de vida, o nascer de novo e a renovação interior purificadora. Uma vez dispostas as flores da oratória, D. José encerrou-as numa só mão com a bela frase lapidar: «Que fizemos nós dos nossos ideais?» Imagino que ao longo da memorável introdução tenha perpassado entre a multidão presente um abafado rumor. Iria o padre atrever-se a censurar o passado e o presente da igreja histórica? Mas, não! Quando a homilia atingiu o cume da sua tensão dramática (com a questão - «Que fizemos nós?») logo se percebeu que o ilustre prelado se referia - como no Concílio de Trento - à sociedade pagã e não à igreja católica ou aos coros angelicais reunidos na opaca sociedade civil . Deixava de lado os nomes e os factos. Alheava-se da terra e punha os olhos no céu. E, no entanto, como poderia o patriarca D. José ter posto lastro no seu discurso...

Na realidade, sobre as responsabilidades católicas nada de concreto e incisivo se ouviu. Lapso de assinalar num especialista experimentado em «fabricantes de opinião», como é o caso de D. José Policarpo. A pedofilia, nome recente, tem um passado secular nos conventos, seminários e internatos católicos. A ganância do lucro, ficou bem expressa na entrevista dada, ainda há poucos dias, pelo próprio D. José acerca dos termos do contrato de concessão do Canal 2: (Pub., 23.12.002). A sede de domínio e de poder está patente no texto da Nova Concordata de que D. José Policarpo foi um dos principais obreiros e cuja versão final iremos conhecer dentro de poucos dias. A defesa do princípio da igualdade de deveres perante a lei fiscal que o cardeal parece defender no abstracto também não se enquadra nos comportamentos reais da classe eclesiástica e das instituições da sociedade civil, sempre sedentas de novos subsídios, regalias e isenções. O crescente fosso entre pobres e ricos, sobressalta e efectivamente revolta qualquer honesto cidadão. Mas ignorará, o Magno Chanceler, que a UCP se dedica sobretudo a formar os quadros técnicos e políticos do grande capital e que é aí que se geram e desenvolvem os projectos, os estudos e as leis em que se firma o neoliberalismo português? Quanto à exploração dos trabalhadores, dos pobres e desprotegidos, é à igreja que compete responder: todas as pontas de lança da exploração nacional do trabalho, da família, dos humildes, dos velhos, dos jovens, dos migrantes e da mulher, foram entregues pelo Estado corrupto aos eclesiásticos ou aos leigos obedientes que lideram as estruturas da famosa sociedade civil...

É natural que D. José Policarpo se saiba exprimir bem e com elegância. Ele tem o cunho inimitável dos grandes Príncipes da Igreja. E não espanta, também, que as suas simpatias pelo capitalismo se envolvam na aura das aparências éticas. Nas crises e recessões, é essa a estratégia mais aconselhável ao grande capital. Mas é à hierarquia católica que assenta, como uma luva, a bela frase retórica: «Que fizemos nós dos nossos ideais?»



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