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Os voos rasantes (4)

RELIGIÕES  • Jorge Messias


As X Jornadas de Direito Canónico, recentemente realizadas em Fátima, tiveram uma importância que, na fase de agudização das lutas de classes que atravessamos, de modo algum deve ser subavaliada. Facilmente se percebe que, neste encontro fechado de 70 peritos não identificados, dominaram duas preocupações centrais: o alinhamento entre o actual poder religioso e as forças políticas e económicas no poder; e a formulação, por parte da igreja, de novas reivindicações que quando forem atendidas expandirão a sua já enorme influência nacional .

Segundo o texto oficial distribuído aos órgãos de comunicação, os tecnocratas eclesiásticos e leigos terão debatido exclusivamente, durante o encontro, o tema da revisão da Concordata que decorre, como se sabe, no silêncio dos deuses. O documento dos especialistas em Direito Canónico inclui 12 pontos.

As três alíneas iniciais repetem afirmações de fé já conhecidas mas melhoradas, agora, por significativas alterações formais. Recusa-se que o entendimento entre a Igreja e o Estado altere a designação, de Concordata para Acordo. Considera-se que a concordata é «um instrumento de paz e de concórdia entre a Igreja e a Comunidade política», isto é, entre a igreja e as forças políticas no poder. Divide-se o exercício de poderes a nível nacional entre a Igreja e o Estado, «cada qual na sua esfera». O que implicará, naturalmente, a recusa tácita do princípio constitucional da laicidade do Estado. O campo religioso passa transversalmente por todo o campo político.

Todo o ponto 4 é uma síntese das condições exigidas pela hierarquia quanto ao sistema educativo. «A presença da Igreja nas escolas é imprescindível numa sociedade pluralista e democrática, seja através de instituições próprias, seja através da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica» (o sublinhado é nossos). Depois, acrescenta-se: «A Igreja tem o direito de fundar e manter escolas a qualquer nível de ensino, a fim de fornecer uma educação com valores humanos e cristãos e apoiar as famílias na sua missão nobre de educação dos filhos. Em particular, a Universidade Católica deverá ser mencionada na nova Concordata legitimando o estatuto adquirido nestes anos de existência. Lamentam-se todas as tentativas de inferiorização a que têm sido sujeitas algumas instituições educacionais da Igreja».

O ponto 5 é uma outra forma de dizer ao Estado que se não deverá aventurar a limitar as verbas com que subsidia indirectamente a igreja católica. «O património cultural da Igreja, identificado que está com a cultura portuguesa, não pode ser objecto de cobiça ou de indiferença. Merece do Estado todo o apoio, apesar de a Igreja ter o direito de salvaguardar os seus interesses. Ao mesmo tempo que se aprecia positivamente a nova Lei do Património Cultural, espera-se que ela seja bem regulamentada e aplicada, abrindo um novo ciclo de entendimento e de eliminação de desconfianças e preconceitos».

O ponto 6 vai directo ao fundo da questão. Aliás, toda a declaração dos canonistas deve ser lida como se de um autêntico caderno reivindicativo de qualquer Conselho de Administração se tratasse. As instituições da igreja, nos seus diferentes níveis de organização e actuação, devem ser isentas de qualquer imposto ou contribuição, sobretudo quando desempenham papel de apoio à sociedade (cultura, assistência, saúde, educação...).

No ponto 7 reforça-se, nos limites do insensato, esta perspectiva de canonista-gestor. «O artigo IX (da Concordata) deve ser alterado, pois não faz sentido exigir a nacionalidade portuguesa para os Bispos e pessoas que ocupem outros cargos, dada a natureza universal da Igreja». É a subordinação de qualquer remanescente teológico que ainda pudesse sobreviver nas mentes dos bispos portugueses, ao primado do capitalismo neoliberal e da globalização. É o desabar da ideia milenar de igreja nacional. E o abandono do conceito de que o bispo católico é um condutor espiritual do povo crente a que pertence e entre o qual nasceu.

«Avante!» Nº 1487 - 29.Maio.2002