Raiva

Anabela Fino

Em meados dos anos 90 do século passado, Manuel da Fonseca escreveu a história do Alentejo a partir de um episódio verídico ocorrido cerca de vinte anos antes e que deu brado na imprensa: o assassinato de um agrário e do seu filho por um trabalhador agrícola. Chamou-lhe Seara de Vento. Obra emblemática do grande escritor comunista e do neo-realismo português, nela está plasmada a repressão sem medida, a humilhação mais abjecta, a exploração sem freios que os latifundiários, com a benção do clero e das forças policiais do fascismo, infligiam ao operariado agrícola alentejano e aos pequenos camponeses, bem como a miséria e a fome nos campos do Sul que Salazar dizia ser o «celeiro da nação». Uma obra onde perpassa ainda a corajosa luta clandestina dos que ganhando consciência de classe aprendiam que «um homem só não vale nada».

Quase sete décadas depois, o cineasta Sérgio Tréfaut adaptou Seara de Vento ao cinema e chamou-lhe Raiva.

Procure-se em qualquer dicionário o significado de raiva e em todos encontraremos o sentimento que anima a história: cólera; fúria, ira, reacção violenta contra aquilo que fere...

Outros falarão muito melhor do que eu sobre a escolha certeira do preto e branco, a excelente qualidade da fotografia, da prestação de actores e figurantes, do cenário, do arrepiante hino dos mineiros de Aljustrel, de cada pormenor com que o trabalho da câmara nos prende à cadeira. Mas não é preciso ser especialista para ver neste filme, tão despojado de artifícios como a própria miséria que retrata, a inqualificável ignomínia de uma sociedade em que uns são amos, porque ricos, e outros são servos, porque pobres. Uma sociedade em que uns se matam por vergonha e outros não têm vergonha de matar. Uma sociedade num sistema político, económico e social em que a exploração é a palavra de ordem dos que detêm o poder para que nunca faltem os pobres com que se fazem os ricos.

Neste filme sem «cartilha ideológica», onde os «mortos são apenas mortos, não são heróis nem símbolos», nas palavras de realizador, tudo é ideológico porque a ideologia resulta da realidade crua, brutal, sem filtro que nos é mostrada. A realidade dos que nada têm a não ser a sua força de trabalho e a quem o trabalho é roubado porque ousam pedir aumento de salário. A realidade do Alentejo no tempo do fascismo e em todos os alentejos de Portugal e do mundo onde o direito a uma vida digna continua por cumprir.

Quando por toda a parte a besta fascista volta a levantar a cabeça sem subtilezas e nos EUA se anuncia a reabertura oficial da corrida às armas nucleares, a Raiva que Tréfaut foi buscar à Seara de Vento ganha uma actualidade acutilante. Lembra-nos, sem o dizer, que um homem só não vale nada.

O filme tem estreia marcada para 1 de Novembro.



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