Tragédias, mitos<br>cinismo e novos perigos

Rui Fernandes

As tra­gé­dias com re­fu­gi­ados su­cedem-se, no Me­di­ter­râneo e fora dele. Re­sul­tado di­recto das op­ções mi­li­tares in­ter­ven­ci­o­nistas na Síria, Líbia e ou­tros países e do caos não ino­cente ins­ta­lado nesses países, mi­lhares de pes­soas fogem de uma vida que as apro­xima cada vez mais da morte. As op­ções que lhes estão co­lo­cadas é morrer ten­tando o di­reito a viver ou morrer. Como disse um re­pre­sen­tante da As­so­ci­ação de Re­fu­gi­ados em Por­tugal no re­cente de­bate sobre esta te­má­tica, pro­mo­vido pelo PCP, «nós não pro­cu­ramos uma vida me­lhor. Pro­cu­ramos sim­ples­mente vida porque para trás era a morte». Ele pró­prio chegou a Malta através de uma em­bar­cação de oito me­tros, com muitos ou­tros, in­cluindo os fi­lhos. O ACNUR reins­talou-os em Por­tugal. Aqui che­gados não têm qual­quer apoio para apren­di­zagem da língua com vista a fa­ci­litar a sua in­te­gração e não têm tra­balho. Como o pró­prio disse «não que­remos ser men­digos. Que­remos tra­ba­lhar e cons­truir as nossas vidas». Pas­sados poucos anos perdem apoios so­ciais, são re­fu­gi­ados mas aplica-se-lhes o en­qua­dra­mento le­gis­la­tivo de imi­grante, com a par­ti­cu­la­ri­dade de não po­derem sair do País, ao con­trário do que acon­tece com os imi­grantes. Apoio ju­rí­dico que os ajude a re­solver os vá­rios pro­blemas que se lhes co­loca não existe e inicia-se um tor­tuoso ca­minho das pe­dras para ace­derem e fa­zerem valer di­reitos.

Des­cons­truir mitos

Os que pro­movem os con­flitos para sa­tis­fa­zerem os seus ob­jec­tivos de ra­pina e/​ou con­quis­tarem po­si­ções es­tra­té­gicas, são os mesmos que usam as con­sequên­cias dessas suas ac­ções para de­sen­vol­verem no plano ide­o­ló­gico cam­pa­nhas ten­dentes a fa­vo­recer a adopção de novas me­didas de na­tu­reza re­pres­siva que fa­vo­reçam os seus in­te­resses.

Uma das ideias, mais ex­pressa ou su­bli­mi­nar­mente pas­sada (muitas vezes até so­mente pelas ima­gens que mos­tram) é a da in­vasão ou a da perda iden­ti­tária, a prazo, dos países. Ora, a ver­dade é que 87 a 90 por cento dos re­fu­gi­ados ficam nos países vi­zi­nhos. Ou seja, o nú­mero dos que ousam tentar chegar a ou­tras pa­ra­gens dis­tantes são uma imensa mi­noria. Outra ideia re­pi­sada é a da ile­ga­li­dade, amal­ga­mando nesta ad­jec­ti­vação re­a­li­dades que são, por na­tu­reza, com­ple­ta­mente dis­tintas, con­fun­dindo di­nâ­micas de re­fu­gi­ados com as da imi­gração. E sempre im­por­tará saber: a quem serve a exis­tência de pes­soas in­do­cu­men­tadas? E im­por­tará saber também: há seres hu­manos ile­gais ou se há prá­ticas ile­gais efec­tu­adas por seres hu­manos?

Ora, a imi­gração não é um pro­blema em si mesmo. A imi­gração existe, sempre existiu e con­ti­nuará a existir. Os pro­blemas são a imi­gração ilegal e é a ten­dência geral exis­tente no plano le­gis­la­tivo, acom­pa­nhado das or­ques­tradas cam­pa­nhas ide­o­ló­gicas, de mis­turar causas mi­gra­tó­rias e res­pec­tivos en­qua­dra­mentos, com des­lo­ca­ções de re­fu­gi­ados.

As me­didas pe­ri­gosas e cí­nicas da União Eu­ro­peia

 As me­didas de­ci­didas pela UE de tri­pli­cação dos fundos da Ope­ração Tritão e do Pro­grama Frontex, vo­ca­ci­o­nados para o con­trolo das fron­teiras ex­ternas da UE e não para o sal­va­mento e in­te­gração dos mi­grantes e re­fu­gi­ados, e o re­forço da co­o­pe­ração de ins­ti­tui­ções de cariz po­li­cial – como o Eu­ro­just e a Eu­ropol – com a po­lí­tica de asilo da UE, no­me­a­da­mente para iden­ti­fi­cação por im­pressão di­gital do DNA dos mi­grantes, para pro­ceder ao re­pa­tri­a­mento de todos os que não se con­si­de­rarem ne­ces­sitar de pro­tecção es­pe­cial, a par de ac­ções ar­madas sobre pu­ta­tivas em­bar­ca­ções usadas para o trans­porte de re­fu­gi­ados, não re­sol­vendo ne­nhum pro­blema, contêm os in­gre­di­entes para ace­lerar novos pro­blemas.

Como dis­cernir entre o que é e não é em­bar­cação de tra­fi­cantes? Ou será que para a UE todas as que trans­portam re­fu­gi­ados são de tra­fi­cantes? Que re­sul­tado prá­tico tem des­truir em­bar­ca­ções que ra­pi­da­mente são subs­ti­tuídas por ou­tras, dado o seu baixo custo? Estas e muitas ou­tras ques­tões de pouco in­te­ressam, in­clu­sive ao Go­verno por­tu­guês que subs­creveu as me­didas. Como al­guém re­feriu no de­bate atrás re­fe­rido, se em vez de existir o mar Me­di­ter­râneo, exis­tisse terra, já es­taria em cons­trução mais um muro. É esta con­cepção de Eu­ropa «for­ta­leza» que está pre­sente nas me­didas adop­tadas, a par do re­forço su­pra­na­ci­onal dos me­ca­nismos de se­cu­ri­tá­rios. E no en­tanto, existe uma Con­venção In­ter­na­ci­onal da ONU sobre a pro­tecção dos Di­reitos de todos os Tra­ba­lha­dores Mi­grantes e mem­bros das suas fa­mí­lias (Re­so­lução nº 45/​158 de 18 de De­zembro 1990) que es­ta­be­lece um vasto con­junto de prin­cí­pios sobre di­reitos e li­ber­dades dos mi­grantes, in­de­pen­den­te­mente da sua si­tu­ação re­gular ou ir­re­gular, o di­reito ao re­a­gru­pa­mento fa­mi­liar e a pre­venção ao trá­fico de pes­soas, etc., aliás, as­pectos sobre os quais a União Eu­ro­peia tem vindo su­ces­si­va­mente a adoptar nor­ma­tivos. Em­bora apro­vada em 1990, a Con­venção só en­trou em vigor en­quanto ins­tru­mento pleno em 2003, ano em que ob­teve a subs­crição do nú­mero mí­nimo de vinte países ne­ces­sário para o efeito. Ne­nhum desses países era da União Eu­ro­peia.

Foi o PCP o pri­meiro e o único par­tido a sus­citar o pro­blema da não ra­ti­fi­cação por parte do Es­tado por­tu­guês da re­fe­rida Con­venção, que até aos dias de hoje não foi ra­ti­fi­cada por Por­tugal. Por que será?




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