O jogo e as regras
Imaginemos uma situação que é decerto frequente. Ou melhor, adivinhemo-la. Tratar-se-á de um homem, português, trabalhador por conta de outrem, já carregado de muitos anos e por isso com direito a receber da Segurança Social a sua pensão de reforma. Desde os seus já longínquos dezasseis anos de idade, altura em que conseguiu o primeiro emprego, viu deduzida ao valor do seu salário a importância dos descontos que aliás eram obrigatórios por força de lei. De resto, nunca lhe passou pela cabeça contestá-los, tanto mais que lhe foi explicado destinar-se parte de tais descontos a garantir-lhe uma pensão no dia então distante em que fosse velho. Se lá chegasse. Tratava-se, pois, de uma espécie de mealheiro: em vez de, mês após mês, meter uma tantas moedas num porquinho de barro ou, em alternativa um pouco mais tosca, guardar uma nota debaixo do colchão, entregava esse dinheiro nas mãos do Estado, pessoa séria e de honestidade indiscutida, na certeza de que ele lho devolveria, meio século mais tarde, para que as inevitáveis rugas, artroses e doenças que a velhice traz não viessem acrescidas de fome, privação de medicamentos e outras formas de mau passadio. Não era um grande negócio, aliás nem sequer era negócio, era um contrato não escrito ou passado a escritura notarial mas testemunhado por milhares e milhares de outros trabalhadores como ele. De resto, tratava-se de regras simples, de justeza quase intuitiva, que por isso não ofereciam motivo para dúvidas ou desconfianças. Nunca, mas rigorosamente nunca, alguém então veio dizer-lhe que o seu dinheiro pelo Estado arrecadado mensalmente se destinava a fazer outros pagamentos. De resto, sejamos francos: se alguém lho tivesse dito era altamente provável que o tal trabalhador não estivesse facilmente por tais ajustes. Seria, no mínimo, questão a ver com cuidado, que a vida custa muito a ganhar e desde cedo é previsível que a velhice custará muito a sofrer.
Com o jogo a mais de meio
Passaram anos, decorreram décadas, e eis que, volvido todo esse tempo, vêm dizer ao trabalhador que o recebimento da pensão de reforma prevista desde a sua juventude e para a qual pagou durante meses e meses, anos e anos, não está tão garantida quanto ele julgava, não está mesmo nada garantida. Porque, afinal, as regras não são as que sempre foram geralmente aceites e nunca contestadas, porque as regras são outras sem que ao longo de décadas alguém tivesse vindo anunciar a mutação. O trabalhador, que como é comum gosta de futebol e de ouvir comentários ao jogo produzidos por técnicos sabedores e por sabidos afins, sempre ouviu dizer que não podem alterar-se regras com os jogos já em curso. E, porque não é parvo, entendeu que este princípio, que lhe parece evidentemente justo e inerente à honestidadezinha básica, pode e deve ser aplicado não apenas ao futebol mas sim a todas as actividades humanas. Ficou por isso espantado quando começou a ouvir uns sujeitos que na televisão vêm impingir-lhe uma surpreendente versão das coisas referentes aos seus descontos e à sua reforma: que, afinal, o Estado gastou o valor dos seus descontos e que a sua reforma terá de ser paga pelos descontos dos seus filhos ou dos filhos dos seus amigos e camaradas de trabalho e de geração. Ao longo de estirados anos nunca tal lhe havia sido dito, e o trabalhador percebe: mudaram as regras com o jogo já muito adiantado, isto é, fizeram na vida dele e de muitos mais o que nem no futebol é permitido. Dito de outro modo: enganaram-no. Ou talvez mais exactamente: andam a tentar que ele se deixe enganar. Ninguém se surpreenderá que ele, trabalhador com décadas de descontos, gasto pelos muitos anos de trabalho, não se conforme com a alteração das regras. Porque o jogo já vai a mais de meio. E o que é inaceitável no futebol não é aceitável para uma vida inteira.