Adeus faraó, nós só adoramos o sol, de Nuno Gomes dos Santos

O fim da festa, pá

Domingos Lobo

Escrever é, cada vez mais, para o escritor consciente do seu papel nas sociedades contemporâneas, um acto de responsabilidades: cívicas, primeiro, éticas e culturais, sempre. Não há literatura inócua, literatura que não vise objectivos centrais de participação ou afirmação pessoal ou colectiva. A obra literária existe para agitar, para agir sobre o meio e, ambição suprema, a longo prazo, para investir na aventura subliminar de pretender transformar o homem. Utopia, claro, mas a grande literatura constrói-se com loucos visionários, com homens e mulheres que só entendem estender os passos às emboscadas do futuro. Há, nesta caminhada, quem lhes tente travar a progressão – aconteceu no passado, com alguns presencistas ao andarem, espertotes, a impingir-nos a treta simplista da arte pela arte; em épocas mais recentes a mistificação da pós-modernidade, que por aí ainda habita convencida e ufana, sagaz a abrir portas e janelas a uma subliteratura soporífera, de cordel frouxo e palavrão agudo e soez. Pretende-se com as hodiernas vagas o que se pretendeu no passado: cortar o passo à literatura empenhada ou seja, aquela que tem o homem e a sociedade como objecto primordial de reflexão. Nuno Gomes dos Santos não vai por aí. Esta sua novela, Adeus Faraó, nós só adoramos o sol, revolve os passos da geração de 60, denuncia essa pátria do Manholas, que nos garantia a paz dos cemitérios, pão minguado para os enganos da fome, prisões e exílios para os inconformados e uma G3 com fardamento a condizer para irmos matar pretos malandros nos caminhos de perdição das matas africanas.

Contra esta morte suspensa tivemos um punhado de homens e mulheres que gritaram não! Que souberam urdir, no silêncio das noites e dos dias, a argamassa da esperança. Foram eles que sonharam Abril, lhe deram fulgor e abriram estradas largas de futuro. Sonho fecundo mas breve, escasso para tanto sonho adiado. Mas o Portugal velho, das leiras da fome e das cepas cansadas, dos interesses, do compadrio, do latifúndio, das sotainas, do ranço caserneiro; o país moribundo das sombras rapaces do bolor salazarento, ressurgiu num cinzento Novembro. Os ex de todos os matizes reorganizaram, no lixo, as sobras putrefactas da ditadura. E veio o bloco central e o cavaquismo e o silêncio foi ganhando terreno, a tristeza voltou a toldar o rosto da multidão – a praça ficou de novo desprotegida, aberta ao saque, à vil cobiça; vieram os tecnocratas sem memória, sem cultura, grunhos serviçais às ordens do capital com sede em Berlim, Bona, Bruxelas e adjacências; vieram as golpadas, os grupos que na sombra manobram povos, sistemas e governos submissos.

O desconhecido, o novo indescoberto a sobrepor-se às ruínas de um país que não queríamos, que não quisemos nunca de tão prostrado, mesquinho e sufocante, definhava. O país que sonhámos em Abril era feito de frémitos, de êxtases, de movimento constante, da transformação dos homens e da vida. Um país a questionar-se permanentemente, a inventar-se, a não ter medo de trespassar o real, a irrealidade do real, a criar as utopias permanentes e tangíveis, a mudança possível, a morder os dias como se fossem únicos e últimos, sempre o primeiro dia do resto das nossas vidas do Sérgio Godinho; dias confusos mas extremos, soltos nas acções e nas ideias. O sal da vida.

Destruíram os baluartes da nossa cintura industrial, a muralha de aço do nosso canto maior: Lisnave, Quimigal, Siderurgia, Sorefame, Parry & Sons, Mague, e outras, tantas outras. Entrávamos na pós-modernidade (ou o que quer que isso seja) conduzidos por imbecis de muleta vesga e agiotas reciclados em exploração bolsista. Ficou a pairar no ar rarefeito da cidade este fedor de morte anunciada pelas trombetas do FMI e reverentes comparsas caseiros; este apodrecer lento, esta ditadura mansa que nos vai tragando devagar e sem dor até ao esbulho total do humano que em nós ainda teima em subsistir. E a loucura, que será uma espécie de recusa deste reino circular de indigências, foi-nos tomando lenta, imponderavelmente. Não a loucura dos sonhos ultrajados de Libertado, nome de guerra, em guerra com os seus/nossos fantasmas de geração (só o simbólico do nome nos aterra e inquieta), de seu inteiro nome Luís Alberto Silva, um nome como qualquer outro, apenas singular nesta brilhante metáfora dos nossos desassossegados dias, nesta novela modelar só possível de construir graças à imaginação fértil de um poeta, de um escritor que assume o seu lugar no espaço público, que se expõe e grita – a loucura de Libertado é também essa irreverência: o grito, libertário, um hino, a Internacional, ao caso, que define um tempo, uma coragem, uma determinação, um percurso.

Adeus Faraó, nós só adoramos o sol, de Nuno Gomes dos Santos, pelo seu percurso identitário, pelo que revela – e com que engenhosa contenção o faz – da geração de 1960, as suas derivas inquietas pelos corredores do silêncio e do exílio, recorda-me o romance Cavalos Brancos de Espuma, esse belo texto do escritor Miguel Medina.

Este livro de Nuno Gomes dos Santos tem, sem o expressar tão linearmente, todas estas premissas e inquietações, num corpo discursivo que trata os signos e a memória por tu, que reinventa os modos de contar, que envolve o discurso narrativo de expressões morfológicas incomuns, só possíveis quando o autor tem pleno domínio das derivantes sintácticas, que se expressa numa linguagem que desce ao âmago das perplexidades, dos sonhos e dos sobressaltos de uma geração que lutou, sofreu as sevícias de pides e gorilas; andou de G3 pelas matas africanas em cometimentos de ver matar e morrer; se exilou em franças e araganças; escreveu músicas, poemas e panfletos nos cafés parisienses da Rive Gauche; inventou nas fábricas, nas colectividades, no teatro, na música, nas clandestinas, nocturnas incursões, na bruma de um país soturno e vigiado, o dia levantado e solar, inteiro e justo da nossa alegria; cantou a plenos pulmões as Grândolas da nossa esperança colectiva. E viu, um a um, os sonhos a dealbar, o retorno dos sabujos, dos rendidos do sonho, as réstias dos cravos que murcharam nos canteiros à míngua e não sabemos hoje – como talvez já o não soubéssemos em Novembro de 1975 –, se, da nossa festa que mataram, pá, sobrou sequer um ramo de alecrim para que possamos de novo, nós ou outros que virão, expurgada a loucura da nossa incredulidade, da nossa incapacidade de compreender a apagada e vil tristeza que nos deixaram de sobra, reinventar o dia claro – e incendiar de novo as ruas.

É precisa a lucidez da loucura para que possamos reconstruir, tijolo a tijolo, os dias largos da nossa alegria. Está tudo escrito num pedaço de papel que Laura recortou, como ilusão de passagem, de um jornal: Adeus Faraó, nós só adoramos o sol. Ou seja, na prosa enxuta e luminosa deste livro.

 



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