Um manual do crime impune

Jorge Messias

«A Igreja não é uma grande em­presa porque a Igreja tem uma des­mul­ti­pli­cação de pes­soas ju­rí­dicas. Cada uma dessas en­ti­dades é uma em­presa pe­quena. O elo entre todas elas é a Igreja como co­mu­nhão. Houve ou­tros países que co­me­teram o erro de con­cen­trar tudo na per­so­na­li­dade ju­rí­dica da di­o­cese …» (Car­deal-pa­tri­arca, D. José Po­li­carpo em en­tre­vista ao Diário de No­tí­cias, De­zembro de 2011).

«As Mi­se­ri­cór­dias, as IPSS, os Cen­tros So­ciais, re­pre­sentam uma pa­nó­plia muito pe­sada para nós. Esse te­cido em­pre­sa­rial está a ac­tuar já neste mo­mento. São ins­ti­tui­ções que sub­sistem porque têm tido um apoio es­tru­tu­rado e ne­go­ciado com o Mi­nis­tério da Se­gu­rança So­cial e … bem! O Es­tado tem cons­ci­ência de que através das nossas ins­ti­tui­ções presta um ser­viço pú­blico mais ba­rato com grande qua­li­dade hu­mana e es­pi­ri­tual e, hoje, até téc­nica. A ajuda do Es­tado, neste mo­mento, não ofe­rece, quanto a mim, razão de queixa. A única coisa que está a acon­tecer é que não abre a novas frentes!» (idem, ibidem).

Pas­sa­gens da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa: «É ta­refa fun­da­mental do Es­tado… pro­mover o bem-estar e a qua­li­dade de vida do povo e a igual­dade real entre os por­tu­gueses... me­di­ante a trans­for­mação e mo­der­ni­zação das es­tru­turas eco­nó­micas e so­ciais – Art. 9.º; as igrejas e ou­tras co­mu­ni­dades re­li­gi­osas estão se­pa­radas do Es­tado - Art. 41.º; in­cumbe pri­o­ri­ta­ri­a­mente ao Es­tado...ori­entar a sua acção para a so­ci­a­li­zação dos custos dos cui­dados mé­dicos e me­di­ca­men­tosos – Art. 64º »

Numa re­cente en­tre­vista do car­deal-pa­tri­arca de Lisboa, o mais ele­vado membro da hi­e­rar­quia ca­tó­lica re­co­nheceu im­pli­ci­ta­mente um facto evi­dente mas até aqui de­li­be­ra­da­mente ig­no­rado pelo clero: a Igreja amolda-se aos gostos dos mer­cados. Como em­presa ca­pi­ta­lista, entra nos ne­gó­cios cor­rentes para ga­rantir a am­pli­ação dos seus lu­cros e uma maior pe­ne­tração na so­ci­e­dade; sob di­fe­rentes capas ins­tala em todos os sec­tores so­ciais redes de malha fina cada vez mais ex­tensas e di­ver­si­fi­cadas que obe­decem ce­ga­mente às ori­en­ta­ções cen­trais do Va­ti­cano.

Pelo menos, bispos e car­deais es­peram que assim seja. Para se jus­ti­fi­carem, de­fendem a tese de que apoiar os ricos é be­ne­fi­ciar os po­bres. Mesmo sa­bendo que é ca­ri­ca­tural a noção de ca­ri­dade que a Igreja propõe como subs­ti­tuto das fun­ções do Es­tado so­cial.

Por­tugal tem 89 mil qui­ló­metro de su­per­fície, 11 mi­lhões de ha­bi­tantes e 20 di­o­ceses que al­bergam 4364 pa­ró­quias. As IPSS são mais de 3000. Lares e pontos de abrigo, para lá dos 2000. As Mi­se­ri­cór­dias gerem cerca 400 hos­pi­tais e cen­tros de Saúde. Mas não é só em Por­tugal que isto acon­tece. Se qui­sessem falar, os mul­ti­mi­li­o­ná­rios de Bil­der­berg muito te­riam para contar. E se o dis­curso papal fosse «sim, sim; não, não», então o povo veria claro nas trevas das con­cor­datas, das so­ci­e­dades se­cretas e dos off-shores...

No plano so­cial, com um go­verno por­tu­guês como este, a Igreja pa­rece im­pa­rável mas não é tanto assim. Há IPSS que fun­ci­onam só no papel e também muita cor­rupção no meio de tudo isto. As ins­ti­tui­ções «não lu­cra­tivas» as­so­ciam-se a «lo­bies» lu­cra­tivos e a breve trecho já nin­guém sabe onde «a terra acaba e o mar co­meça». As tais «em­presas pe­quenas» de que se gaba D. José in­fil­tram-se no SNS com as suas pa­ra­pú­blicas des­ti­nadas a criar e a so­negar novos lu­cros mas os re­sul­tados são in­su­fi­ci­entes. A nível ad­mi­nis­tra­tivo – onde as ins­ti­tui­ções pri­vadas pre­fe­ren­ci­al­mente se ins­talam – na Saúde au­mentam os dé­fices, os di­nheiros mal pa­rados e a luta pelo poder. Com «cortes sobre cortes» e com a cres­cente ex­plo­ração do tra­balho, es­cas­seia o pes­soal mé­dico e pa­ra­mé­dico e de­grada-se a qua­li­dade an­te­ri­or­mente re­co­nhecia ao sector. Há hos­pi­tais que en­cerram en­quanto ou­tros aguardam a sua vez ou são «ofe­re­cidos» à Igreja por um go­verno para o qual a Cons­ti­tuição não existe. As «taxas» agora es­ta­be­le­cidas para a pres­tação de ser­viços do SNS ri­va­lizam com os das clí­nicas pri­vadas quando, cons­ti­tu­ci­o­nal­mente, seria dever do Es­tado pagá-los com o di­nheiro das con­tri­bui­ções nor­mais dos ci­da­dãos.

Cá fora, nos hos­pi­tais es­ta­tais que restam, vão acu­mular-se os jo­vens, os ve­lhos e os po­bres. Como gado. Como nos tempos de Sa­lazar. Como quando a vida dos in­de­fesos de­pendia dos ca­pri­chos da Virgem de Fá­tima.

A si­tu­ação so­cial dos por­tu­gueses é já uma ruína. Mi­séria cres­cente. Até que os po­bres deixem de con­sentir nestes jogos de salão e façam es­cutar a sua voz.

Mesmo que ou­tros a não queiram ouvir.



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