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A má-fé
no posto de comando

• Vítor Dias

Até à semana passada, os leitores do "Expresso" não tinham tido direito a qualquer informação jornalística sobre o Projecto de Resolução para a Conferência Nacional do PCP.
Mas, na última edição, já tiveram direito a um comentário de Edgar Correia a esse texto que, em rigor, não discute nenhuma das ideias nele contidas, falsifica várias, e na verdadeira língua de pau que o autor atribui a outros mas pratica esforçadamente, se limita a repetir sentenças que, na mais benévola das hipóteses, só são explicáveis por pura má-fé.

Vale a pena ir por pontos, até para que os leitores afiram se é ou não verdade que o autor do comentário e outros, sempre que o debate desce ao concreto e são apanhados em falso, aos quesitos dizem nada e passam rapidamente a outro assunto. Assim :

1. Edgar Correia critica a direcção do PCP por fazer remontar a meio da década de 80 a grave erosão eleitoral do PCP e por invocar a esse propósito os "múltiplos efeitos" do fracasso das experiências do Leste europeu e "profundas mudanças" ocorridas em diversos planos. Mas é certo e sabido que se a direcção do PCP se tivesse prestado a apenas examinar a quebra eleitoral verificada entre 1999 e 2002, lá teríamos Edgar Correia a clamar que a direcção do PCP escamoteava que a erosão eleitoral já vinha muito mais de trás e se traduzia em bateladas de votos e de deputados.
Fiado no desconhecimento que a generalidade dos leitores do "Expresso" terá do conteúdo real do documento, Edgar Correia escamoteia que nele se faz primeiro uma aproximação às causas gerais da erosão eleitoral do PCP desde 1985 e depois, separadamente mas com relação com esse ponto anterior, dos factores que terão pesado de forma especifica no resultado de 17 de Março último, sublinhando que se trata de factores desfavoráveis que não se verificaram nas eleições de 1999.

2. Verdadeiramente espantoso e claramente elucidativo de que não há celofane "renovador" que esconda o esquematismo estrutural de um pensamento, é que se venha outra vez recorrer ao argumento de que o PCP não pode invocar a "bipolarização" até porque o CDS-PP e o BE, apesar dela, cresceram em votos. Ou seja, para Edgar Correia, estas coisas são chapa cinco, os eleitorados são todos iguais e têm todos o mesmo tipo de reacções. E nem sequer percebe, ou não lhe convém perceber, que possivelmente enquanto o eleitorado do CDS via as eleições como "já ganhas" pelo PSD e não sentia nenhum susto pela hipótese de vitória do PS, já segmentos de eleitorado do PCP, quanto mais viam "a dinâmica de vitória do PSD", mais permeáveis ficavam ao voto no PS "para derrotar a direita".

3. Edgar Correia escreve também que agora "torna-se mais fácil evidenciar como foi politicamente errado que a direcção do PCP tivesse sustentado que "o PS era igual ao PSD", quando não afirmou que "ainda era pior" . Nesta matéria, o assunto é muito simples: se não quer passar por autor de mentiras ou manipulações, Edgar Correia deve demonstrar onde e quando é que a direcção do PCP disse tal coisa, e onde é que a direcção do PCP, antes ou depois do XVI Congresso, disse mais e pior do que Edgar Correia ou João Amaral disseram e escreveram dezenas de vezes. Ou em vez de estar a criticar a direcção do PCP, Edgar Correia estará a criticar-se a si próprio por, em Janeiro de 2000, escrevendo sobre a questão da ida do PCP para o governo logo ter intercalado a pejorativa interrogação "com este PS ???" ?; estará a criticar João Amaral que, na mesma época, examinava no "Expresso" a possibilidade do PS de participar com outras forças numa alternativa e, além de outros mimos especialmente dirigidos ao "PS de Guterres", concluía que " seguramente este PS não é de confiança. Pela sua própria prática, parece querer cortar as escassas possibilidades de diálogo à esquerda"?; estará a criticar João Amaral por, entre tantos outros exemplos, ter escrito sem "nuances" que o país precisava de se libertar da "malfadada tenaz : ou política de direita do PS ou política de direita do PSD" ? Estará a criticar Paulo Fidalgo que, em Dezembro de 2000, subiu à tribuna do XVI Congresso do PCP para, nada ralado com avanços da direita, proclamar, a fechar a sua intervenção, que "são entusiasmantes as batalhas que se aproximam. O PS encaminha-se para uma clamorosa derrota pelas suas opções de direita!" ?

4. Curioso neste texto agora publicado no "Expresso" é que ele prova que, à medida que argumentos e teses anteriores vão ficando esfarrapados, se vai indo mais para trás no tempo. Até há pouco, a culpa era das "erradas orientações estratégicas" do XVI Congresso (que nunca são concretamente identificadas) e da posterior acção política do PCP, ou seja durante o ano de 2001. Agora, volta-se para trás e passa a acusar as orientações dominantes do XVI Congresso de terem sido marcadas por "uma completa desvalorização do perigo dos partidos da direita regressarem ao poder" e por, supostamente, a direcção do PCP ter rompido com o "novo impulso" (Fev. de 98) a que, com patente falta de rigor, atribui a linha de chegar a "compromissos" que "permitissem evoluir no sentido de uma reorientação à esquerda da vida nacional" (formulações que devem corresponder às preferências não inocentes de Edgar Correia mas que não são as que estão no documento então aprovado pelo Comité Central do PCP).
Trata-se porém de um conjunto de meras efabulações sem qualquer contacto com a realidade e que, além do mais, são um autêntico "boomerang" que atinge Edgar Correia e João Amaral.
Em vez de acusar o XVI Congresso (que, em rigor, acolheu e consagrou todas as linhas fundamentais do "novo impulso") de ter desvalorizado o perigo da direita regressar ao poder, o que Edgar Correia tem de exibir é onde é que estão os artigos dele próprio e de outros no ano de 2000 (é 2000, não 2001) alertando para esse perigo. O que Edgar Correia tem de provar é que seja falso que ele próprio (então membro do Comité Central e da sua Comissão Política) e João Amaral (então membro do Comité Central) tenham votado favoravelmente desde Novembro de 1995 até Dezembro de 2000 todos os comunicados do Comité Central que definiram a atitude do PCP face aos Governos do PS, as orientações do PCP face à política desses governos e as linhas de iniciativa e acção política do PCP.
É certo que, em artigo conjunto no Expresso em 17 de Janeiro deste ano, Edgar Correia e João Amaral chegaram a escrever que no XVI Congresso se tinha enfatizado "a dificuldade dos partidos da direita em recuperarem eleitoralmente", logo acrescentando sibilinamente os autores que " um ano decorrido foi o que se viu...".
Mas esse foi um momento particularmente pouco prestigiante para os autores, porque eles não podiam deixar de saber que essa frase está de facto na Resolução do XVI Congresso mas claramente reportada a um balanço de actos eleitorais passados, ou seja, os realizados entre 1996 e 2000 (como se comprovará, abrindo o livro do XVI Congresso na página 331). Não se tratando pois, como desonestamente o artigo quis fazer crer, de uma análise intemporal ou de uma previsão para o futuro, mas de uma constatação - indiscutivelmente rigorosa- sobre os resultados da direita nessas anteriores eleições. E, quanto ao futuro, a Resolução do XVI Congresso até advertiu que o PSD "tenderá a "radicalizar" a sua postura face ao governo na tentativa de capitalizar em proveito próprio o descontentamento popular e o patente desgaste do governo"(pág.336).

5. Apesar de todas as respostas que certamente já leu sobre este assunto, Edgar Correia volta também à carga com o "um grave erro de análise" que foi que " a direcção do PCP tenha sido favorável à dissolução da AR, num quadro que beneficiava os partidos da direita", acrescentando que "permanece até hoje em aberto o insondável mistério das razões pelas quais a direcção do PCP aguardou a dissolução da AR e o desaparecimento da folgada maioria aí existente de 134 deputados à esquerda do PSD, para só então se manifestar disposta a examinar "com as outras forças democráticas as possibilidades de definição de uma política de esquerda (...) e de concretização de uma solução governativa em condições de a respeitar, garantir e aplicar".
Toda esta conversa só quer dizer que há quem continue a não querer perceber nada do que se passou na noite das eleições autárquicas e nos dias seguintes.
Continue a não querer perceber que, nesta matéria, independentemente do que o PCP pudesse ou devesse pensar ou querer, a vontade ou opinião de cada partido não valia ou pesava o mesmo. Por outras palavras, a vontade decisiva pertencia ao PS e a sua vontade, desde a noite de 14 de Dezembro e do dia seguinte (declaração de Jorge Coelho), era claramente a de convocação de eleições antecipadas.
Continue a não querer perceber o que até Medeiros Ferreira explicou cristalinamente quando escreveu que a atitude de Guterres não tenha sido um pedido de demissão mas um acto voluntário de interrupção da legislatura.
Continue a não querer perceber que, para além de tudo isto, o PS estava sem líder e que nem sequer haveria interlocutor para qualquer hipotética diligência do PCP que , naquele contexto de "estado de necessidade", a ser possível, só poderia traduzir-se na sua transformação em mera força de apoio ao PS.
Continue a não querer perceber que a única coisa que o PCP podia ter feito não era impedir a antecipação das eleições (apoiada pelo PS, PSD, CDS e BE) mas sim declarar publicamente que era contra essa antecipação, faltando saber em que é que isto favoreceria a colocação do PCP para umas eleições que de, ciência certa, se iriam realizar dali a três meses.
E, sobretudo, continue a esquecer-se que foi o próprio Edgar Correia que, em artigo publicado no "Público" doze dias depois das autárquicas, escreveu que "a demissão de António Guterres e a consequente queda do Governo" tinham "conduzido à (praticamente decidida) realização antecipada de eleições".

6. Finalmente, é de registar que seja um dos mais extremosos cultores de um sistema de acção política super-piramidal - artigos de opinião e declarações nas TV's em que os membros do Partido são puros consumidores passivos - ou defensores de sistemas de documentos fechados em que ninguém toca nem emenda, a regressar às críticas ao funcionamento do PCP, entre tantas coisas sempre esquecendo que os Congressos ( e também a próxima Conferência Nacional) são sempre informados das propostas de emendas não acolhidas pela Comissão de Redacção e que os delegados aos Congressos (e também à próxima Conferência) têm a inalienável liberdade de votarem como entenderem (a favor, contra, ou abstenção) os documentos propostos. E isto, sublinhe-se, num contexto em que, a par da pluralista circulação horizontal garantida pela Tribuna do "Avante!", por força da discriminatória circulação horizontal de informação nos restantes meios de comunicação social, são as opiniões e teses de alguns membros do PCP críticos da sua orientação e direcção que são mais conhecidas pela sociedade portuguesa e pelo conjunto dos militantes do PCP.
E quanto a "insultos" e "calúnias" (sempre indesejáveis e inaceitáveis), só resta dizer que nesta matéria não há nada para discutir com um queixoso que, logo a seguir às autárquicas, em declarações a um jornal estrangeiro, acusava a direcção do PCP de ter um comportamento "estalinista" e "algo terrorista".

7. Em todo o texto de Edgar Correia, só há uma coisa útil que se confirma: é que, sem prejuízo de outras suas teses como, por exemplo, um juízo global, expresso a pretexto das eleições francesas, sobre "a desadequação dos partidos comunistas", o relacionamento e atitude do PCP face ao PS (que aliás deturpa e falsifica previamente) são um dos seus principais eixos de divergência e uma das raízes determinantes das suas atitudes.
Mas aqui, não se pode deixar de registar que ele e outros membros do PCP já dedicaram milhares e milhares de palavras às suas críticas ao "sectarismo" e "enconchamento" do PCP, mas passam-se as semanas e os meses e até hoje, apesar de dezenas de artigos de opinião, entrevistas e declarações públicas, há esclarecimentos que nunca aparecem nessas vozes acusadoras.
Na verdade, nunca aparece a negação das dezenas e dezenas de propostas positivas, de variado alcance e importância, que o PCP, numa postura construtiva que nunca abandonou, de facto aprovou com o PS.
Nunca aparece a lista dos projectos, propostas, políticas ou medidas positivas formuladas pelo PS que o PCP tenha rejeitado por alegado "sectarismo" ou "enconchamento".
Nunca aparece a lista das orientações ou políticas do Governo do PS que o PCP efectivamente combateu mas que porventura se entenda que não devia ter combatido e antes devia ter apoiado.
Nunca aparece nenhuma reflexão ou opinião sobre o facto de António Guterres não ter dado a mais pequena corda às propostas de rectificação de política que Carlos Carvalhas formulou na Festa do Avante! de 2000 ( e reafirmadas na AR no debate do OE para 2001, na presença do Primeiro-Ministro) e também nem sequer ter dado qualquer resposta ao memorandum que o PCP lhe apresentou sobre linhas alternativas fundamentais para a elaboração do Orçamento para 2002 (ainda hoje disponíveis em www.pcp.pt/actpol/temas/orcam/frset-oe2002.html ).
E, sobretudo para quem tanto fala de uma supostamente milagrosa proposta de "plataforma" - pelos vistos, o verdadeiro elixir da alternativa de esquerda ( ou será só da "reorientação" à esquerda?) -, também nunca aparece a lista dos pontos da política de esquerda defendida pelo PCP que deveriam ter sido deitados ao mar a beneficio de um eventual entendimento com o PS (que este aliás nunca desejou ou facilitou).
Nessa altura, ou seja, quando finalmente aparecerem algumas destas coisas, ficará então ainda mais claro ao que andamos uns e outros.

«Avante!» Nº 1487 - 29.Maio.2002