Em 2023 (segundo o INE), 44,5 por cento dos assalariados trabalhavam por turnos e/ou ao serão, noite, sábado e/ou domingo, isto é, mais de 1,9 milhões de trabalhadores. Destes, 684 mil trabalhavam por turnos, 1 milhão e um mil ao serão, 504 mil à noite, 1 milhão e 639 mil ao sábado e 1 milhão e 40 mil ao domingo.
Centenas de milhares de trabalhadores são obrigados a viver em contra-ciclo com a sua vida familiar (saindo de casa quando os filhos dormem e chegando quando já estão a dormir), social, cultural, desportiva, associativa…
São, também, trabalhadores com impactos negativos na sua saúde, com o trabalho nocturno a exigir um esforço suplementar e a potenciar graves perturbações no sono, irritabilidade, esgotamentos, tendências depressivas e outros problemas neuro-psíquicos.
Mas o que é?
De acordo com o actual Código do Trabalho, o trabalho por turnos por uma regime em que os trabalhadores ocupam sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o rotativo, contínuo ou descontínuo, podendo executar o trabalho a horas diferentes num dado período de dias ou semanas.
Na mesma lei, estabelece-se que sempre que numa empresa o período de funcionamento vá além dos limites máximos para o período normal de trabalho (oito horas diárias, 40 semanais), esta deve organizar turnos de trabalhadores diferentes.
Por outro lado, e também de acordo com o Código do Trabalho, considera-se trabalho nocturno aquele que for prestado num período (de sete a 11 horas), compreendido entre as 0h00 e as 5h00.
E é excepção?
Deveria, mas não é, e vai-se transformando em regra nos bolsos dos grupos económicos.
Faz sentido que este regime se aplique, por exemplo, a hospitais ou a sectores como os transportes. Nestes casos, apesar da necessidade excepcional, devem garantir-se direitos adicionais, como assegurar a opção de troca para o regime diurno após um determinado período de tempo.
No entanto, a excepcionalidade não se aplica a outros sectores, como é a indústria e a fábricas como a Autoeuropa, a Matutano ou a Sidul. Quanto a estas, poder-se-ia questionar: qual a necessidade imperiosa de fabricar continuamente automóveis, embalagens de batatas fritas ou açúcar? A resposta é uma: a necessidade dos lucros do grande capital.
O que faz falta?
Soluções, muitas das quais têm sido defendidas pelo PCP, por exemplo, na Assembleia da República (ver 2.ª caixa)
Para o PCP é urgente limitar, salvaguardar e reparar os efeitos que o trabalho por turnos, comprovadamente, tem na saúde dos trabalhadores, afirmando como princípio fundamental que o trabalho diurno é o adequado ao ser humano.
Faz falta a fixação e cumprimento do horário de trabalho, o respeito pelos tempos de descanso, garantir condições de pagamento e compensação do trabalho prestado, a conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal, o direito à antecipação da reforma… Faz falta muita coisa, que os mesmos de sempre insistem em negar.
Ouvir os problemas…
No sentido de saber mais sobre a realidade destes trabalhadores, o Avante! conversou com quatro pessoas em regime de trabalho por turnos e nocturno, de sectores distintos. Falámos com Paulo Ferreira (PF), electromecânico nas reparações do Metro de Lisboa há 30 anos; Ricardo Correia (RC), que trabalha desde 1993 na programação da manutenção de prensas na Autoeuropa; e Luís Morais (LM), enfermeiro há sete anos no Hospital Egas Moniz:
Como é um dia normal no teu trabalho?
PF: Passado dentro de um túnel e nas estações, a fazer a manutenção.
RC: Na manutenção, onde estou, é sempre imprevisível. Na produção é mais previsível, a malta chega e pega no trabalho. Mas, no fundo, temos sempre trabalhos programados, reparações para fazer, estudar alterações para efectuar mais tarde… temos de programar isso tudo.
LM: É variável, mas temos de nos adaptar à rotina, seja de manhã, à tarde ou à noite. Mas mexe um pouco com a saúde de uma pessoa, não ter uma hora definida para deitar ou acordar...
Trabalhas por turnos e à noite. Como é que estão organizados os vossos horários?
PF: À noite é quando faço a manutenção, que não se pode fazer durante o dia. Há vários horários; eu faço principalmente o das 0h00 às 6h30.
RC: Nós fazemos os três turnos – das 7h00 às 15h30, das 15h20 às 0h00 e, à noite, das 23h30 às 7h00.
LM: Não é nada definido, depende das condicionantes. Por exemplo, se houver colegas a exercer direitos parentais, com horários de amamentação ou crianças menores de seis anos, temos de fazer o seu horário. Somos, felizmente, remunerados a mais por esse trabalho fora de horas condignas.
Justifica-se este regime de trabalho? Há soluções?
PF: Sim, esse trabalho à noite tem que existir. O que se passa é que a lei não ajuda quem trabalha por turnos. No meu caso, eu faço uma semana de turnos por mês, mas tenho colegas que chegam a estar cinco ou seis meses de turno, sempre de noite. A reparação tem de se fazer. Agora, pode-se é reduzir os horários, estar menos tempo dentro do túnel.
RC: É muito discutível. Historicamente, o departamento onde estou é um sítio onde se trabalha por turnos, para aproveitar as paragens na produção para fazer correcções e reparações. Mas desde 2017 que praticamente não temos tempo para fazer isso. É trabalhar até partir. Agora, se é importante? Para o patrão é, mas para as pessoas… nós sabemos as consequências que daí advêm.
LM: O pior da situação é haver falta de pessoal, o que obriga a uma sobrecarga nas pessoas que estão a trabalhar. E tudo leva a uma alteração na rotina: há falta de pessoal, gera-se sobrecarga de trabalho; havendo sobrecarga de trabalho, vai mexer com as pessoas, o seu tempo de descanso, a sua saúde…
Como é que consegues conciliar a vida profissional e a vida pessoal?
PF: Trabalhar por turnos afecta a vida toda de uma pessoa. Quando és pai, tens as crianças, mas depois o acompanhamento é difícil, não tens tempo para estar com a família. Em termos de saúde é mesmo drástico. É uma profissão de desgaste rápido, apesar de não ser considerada como tal. Temos montes de problemas cardíacos e, por exemplo, o médico receita-te uma medicação para tomar num horário normal. Tomas medicação, trabalhas uns turnos de dia, andas ali com a medicação direitinha, mas depois trabalhas de noite e tens de alterar.
RC: É muito difícil, e às vezes a vida pessoal é praticamente inexistente. Quando se trabalha à noite, muda todo o teu bio-ritmo – não é a mesma coisa dormir de dia e dormir de noite. No meu caso, por exemplo, tenho por baixo de mim um CAF com crianças a brincar e é muito difícil dormir. Todos os bocadinhos que temos durante o dia para dormir aproveitamos, e há coisas que vão ficar para trás. É claro que tudo isto é muito complicado, ainda para mais num regime onde trabalhas quatro manhãs e descansas um dia, e depois vais trabalhar duas ou três tardes e descansas dois dias… é alucinante.
LM: É complicado e a escala dos turnos nunca é igual. De mês a mês o horário troca. O correcto seria mais regularidade, mas muitas vezes é impossível, com as condicionantes e a falta de pessoal… Tudo isto faz com que, muitos dias, tenhamos de trabalhar 16 horas, o que é negativo até para a própria rentabilidade do trabalho. A partir da oitava ou nona hora, o trabalhador deixa de render, e não consegue fazer o seu trabalho da maneira ideal.
Queres dizer mais alguma coisa?
PF: Acho que tinha que haver luta, pelo menos o pessoal dos turnos. Temos que nos juntar, porque é muito complicado, dá cabo da saúde toda.
RC: O trabalho por turnos influencia na vida familiar, com os amigos, na cultura, na saúde… surgem-nos doenças intestinais, gástricas, que os médicos, hoje, vêem que tem tudo a ver com o trabalho por turnos. Por exemplo, há vezes em que o que comemos é igual nos três turnos, então estamos a cear feijoada às 3h00. São coisas que nos afectam a nível psicológico e fisiológico.
LM: É cada vez mais notável que os colegas, e cada vez os mais novos, querem deixar de trabalhar por turnos, por tudo isso: não ter tempo para os amigos, cultura, família… Ainda no outro dia, uma antiga chefe minha disse que primeiro está o trabalho e depois é que está a família. Sei que temos de trabalhar, o País tem de avançar, mas é mau termos uma chefia dizer-nos que o trabalho está primeiro, e só depois é que está a família.
…e apresentar soluções!
É necessário dar resposta aos muitos problemas enfrentados pelos trabalhadores em regime de trabalho por turnos e nocturno – muitos abordados nestas conversas, outros tantos de que não se chegou a falar.
Nesse sentido, o PCP propõe medidas (algumas já rejeitadas pelos partidos da política de direita no Parlamento) para quem trabalha neste regime:
• Excepcionalidade do regime, garantindo segurança, protecção da saúde, maternidade e paternidade, infra-estruturas e serviços sociais
• Subsídios e compensações adequados e fixados em negociação e contratação colectivas, incluindo subsídio de turno
• Horário nocturno das 20h00 às 7h00, proibindo a desregulamentação do horário
• Sistema de turnos 3x8 limitado e redução semanal das horas de trabalho
• Periodicidade nos dias de descanso rotativos (mesmo ao sábado e domingo)
• Exames médicos regulares (máximo de seis meses de intervalo)
• Valor mínimo do subsídio de turno
• Idade de reforma antecipada e direito de bonificação de 0,2% na reforma por cada ano neste regime
• Direito a passar para o horário diurno, sem perda de direitos ou remunerações, após 20 anos neste regime ou aos 55 anos de idade