Como o algodão

Gustavo Carneiro

A questão da guerra e da paz sempre foi, entre as forças que se reivindicam dos valores (e práticas) da esquerda, uma clarificadora marca de água.

Desde os seus primórdios, ainda na primeira metade do século XIX, que o movimento operário combateu o militarismo, a guerra e as suas consequências para as camadas laboriosas da população. E não tardaria muito até que Marx e Engels ajudassem a estabelecer uma ligação directa entre a guerra e o sistema que a engendra e, dessa forma, a relacionar a luta pela paz com a luta de classes. Caberia ainda aos dois revolucionários alemães o desafio para que se analisasse a natureza de cada conflito em particular: guerras de pilhagem, expansão, ocupação e repressão ou, por outro lado, guerras revolucionárias, defensivas e de libertação nacional? Ao serviço de quem? Com que objectivos?

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, a II Internacional debateu insistentemente a posição a assumir face ao conflito que se aproximava. Não sem diferenças (algumas significativas), concordou em questões fundamentais. Em 1912, no Congresso de Basileia, ligou a «rivalidade louca no domínio dos armamentos» ao aumento dos «já elevados preços dos alimentos»; declarou «guerra à guerra»; apontou a resistência contra os próprios governos e a mobilização popular como formas de concretizar a «cooperação entre os trabalhadores de todas as nações»; exortou a que se opusesse ao imperialismo «a solidariedade internacional do proletariado». Por insistência de Lénine, ficou inscrita no manifesto desse congresso a necessidade de «empreender os maiores esforços para evitar que ela [a guerra] deflagre» e de, caso começasse, tudo fazer para que cessasse o quanto antes e para aproveitar a crise por ela provocada para precipitar a queda do sistema capitalista.

O resto da história é conhecido. Iniciada a conflagração, a generalidade dos partidos da II Internacional (com poucas, mas valiosas, excepções) soçobrou perante o militarismo e o nacionalismo, colocou-se ao lado dos «seus» governos e, renegando o internacionalismo que antes apregoara, aceitou que os povos se massacrassem nos campos de batalha da guerra imperialista e que os seus antigos camaradas fossem perseguidos por se manterem firmes na «guerra à guerra».

A traição ditou o fim da II Internacional e teve o (único) mérito de separar as águas. Por isso é que até pode indignar, mas não surpreende, que também por cá forças que se dizem «de esquerda» se batam pela chamada Comunidade Europeia de Defesa, o reforço da componente militarista da UE, a corrida aos armamentos, o prolongamento da confrontação. Digam o que disserem depois sobre a «paz», a «democracia» e os «direitos», este é um factor de clarificação – que, como o algodão, não engana!



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