Vê Se a Primavera Já Chegou: Maria Helena e Óscar Lopes – cartas da prisão

Domingos Lobo

As cartas são missivas de amor intenso, febris e arrebatadas

Nos grandes momentos de depressão, quando a liberdade nos é ilegalmente coartada por motivos da nossa actividade cívica, do pensamento livre que durante 48 anos de incídia nos foi negado a trote de sevícias, morte, exílio e fera clausura quando, nessa circunstância e a contragosto, nos encontrávamos a sós com a nossa sombra, no escuro de um catre exíguo das prisões da PIDE, ao caso, nesse antro do mal absoluto que era a da Rua do Heroísmo, no Porto. Tempo de balanços, na secura dos dias repetidos, das humilhações, da violência verbal e física, da rudeza impante dos carcereiros.

Tempo de revisitamos devagar, de analisamos, no escuro do catre, a vida vivida e aqueles que connosco, de perto, percorreram esses caminhos de júbilo, de trabalho, de agruras e esperança em futuros de sol e pão – e de amor fecundo.

Óscar Lopes (1917/2013), figura incontornável e maior da nossa Cultura, autor, com António José Saraiva – ao tempo em que este ainda pensava um país justo e solidário –, dessa indispensável História da Literatura Portuguesa, acervo crítico fundamental da criação literária desde os primórdios da língua até às literaturas coevas, crítico lúcido e exigente, actividade que exerceu mesmo na prisão, ou quando foi, pela persecutória acção do poder fascista, obrigado a assinar os seus textos com pseudónimo, tradutor, professor, exímio e influente linguista, antifascista, lutador pela Liberdade e comunista, sempre. Só após o nosso dia inteiro e limpo, e graças às Portas que Abril Abriu, lhe foi possível tornar-se docente universitário na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo sido eleito pelos estudantes da FLUP presidente do seu conselho directivo.

Vê Se a Primavera Já Chegou – Cartas de Prisão, é um oportuno livro, mais um, organizado em torno da vida e obra de Óscar Lopes, por Manuela Espírito Santo, livro que a autora de O Ano Em que Nasceu Abril, organizou e prefaciou com o rigor e o saber que lhe reconhecemos desde o magnífico Óscar Lopes – Retrato de Rosto, até essa aturada pesquisa pela memória dos homens e mulheres que passaram pela Associação de Jornalista e Homens de Letras do Porto e pelas marcas que nessa Instituição deixaram, consubstanciadas nos dois volumes de Eppur Si Muove, livros dos quais já nestas páginas falámos. O mesmo rigor analítico e de pesquisa encontramos agora nestas cartas de prisão, escritas a duas mãos por Óscar Lopes e pela companheira de sempre Maria Helena.

Óscar Lopes foi preso em sua casa, pela PIDE, a 12 de Março de 1955 e solto a 15 de Setembro desse mesmo ano, vitima do vergonhoso processo dos 52, que Francisco Duarte Mangas verteu para esse romance de referência que é Jacarandá. A primeira carta de Óscar Lopes para a esposa, data de 15 de Março. Ou seja, três dias após a sua prisão. As cartas do autor de Cifras do Tempo, são missivas de amor intenso, febris e arrebatadas, mas não esquecem, nessa torrente sensitiva, as pequenas coisas do real quotidiano: Não esqueça o pagamento da Taxa Militar, 50$00, na secção de Finanças, não sei bem se este mês ou em Abril. Estou rijo de saúde. Tenho-vos sempre no coração: para mim terás sempre 17 anos e a mãe 30. Vê se a Primavera já chegou às árvores do quintal. Em mim é Primavera constantemente: basta viver e viverem pessoas como tu.

Helena e Óscar não ignoravam a censura que a PIDE exercia sobre a correspondência e, desse modo, tentavam que os conteúdos se mantivessem dentro de parâmetros possíveis, impedindo a sonegação do diálogo epistolar entre os cônjuges. Enquanto as cartas de Maria Helena se limitam a relatar episódios do quotidiano da família, as notas dos filhos, o seu aproveitamento escolar, ou ligeiras falhas nesse percurso, a escassez de recursos económicos, as questões sobre os editores e o pagamento de direitos, as crónicas para o Comércio do Porto e as repercussões que esses textos teriam, ou não, nas elites do Porto; Óscar fala da família com arrebatamento e de Helena com paixão, por vezes admoestando-a para a necessidade de tomar os medicamentos, não te deixes abater, não deixando, de referir o seu contínuo trabalho de crítico e tradutor (mesmo quando os textos a traduzir lhe não eram estimulantes), derivando, por vezes, para leituras mais apelativas: Estou a trabalhar mais devagar porque o livro do Tolstoi é empolgante. Só encontro paralelo em Goethe; reli já boa parte da «Síbila».1 Leria Tolstoi com muito mais apetite; Maria Helena, eu não sou um rato de biblioteca […] sou integralmente humano, e tenho-te a ti e aos nossos filhos em tudo o que sou e faço.

Vê Se a Primavera Já Chegou, é mais um dos grandes e indispensáveis livros, cuidadosamente editados pela AJHLP. A ler, como é evidente.

 

1 Romance de Agustina Bessa Luís

 



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