Centenário de Carlos Paredes: o povo e uma guitarra
Carlos Paredes completaria 100 anos no dia 16 de Fevereiro de 2025. Criador e intérprete incontornável na história da guitarra portuguesa e da música do século XX, partilhou connosco uma obra que nos convida à reflexão mais alargada sobre arte, criação e militância.
Carlos Paredes via a música como uma expressão profundamente ligada à vida e à realidade social
A dimensão de análise da sua obra continua largamente por conhecer de forma aprofundada. Ainda assim, a música gravada, as entrevistas e alguns textos mais recentemente redescobertos ajudam-nos a comemorar o seu centenário e a trazer para o presente reflexões em torno da sua criação e interpretação, pensamento e militância comunista, que se cruzam com a actualidade de modo muito estreito.
Nascido em Coimbra em 1925, filho do guitarrista Artur Paredes, começou a tocar guitarra aos quatro anos. Mudou-se aos nove para Lisboa, onde estudou no Liceu Passos Manuel e no Instituto Superior Técnico. Em 1949, tornou-se funcionário administrativo do Hospital de São José, cargo que manteve até o fim da vida.
A militância no PCP iniciou-se em 1958, ano em que foi preso. Cumpriu 15 meses no Aljube e em Caxias, sendo condenado a 20 meses de prisão e três anos de suspensão de direitos políticos. Expulso da função pública, só voltaria ao seu local de trabalho após o 25 de Abril. A sua militância comunista – até ao fim da vida – reflectiu-se não só na sua participação no Partido e na sua forma de estar na vida, como também na sua música e numa visão da arte como instrumento de transformação social, assunto sobre o qual deixaria alguma reflexão escrita.
A trajectória musical de Carlos Paredes começou com o lançamento do EP homónimo, consolidando-se desde logo como um dos maiores virtuosos da guitarra portuguesa. Mais tarde seria convidado a escrever para cinema, teatro e dança, tendo a sua música sido protagonista ou participante activa em muitas criações do panorama artístico em Portugal nas décadas de 60 e seguintes.
Paredes via a música como uma expressão profundamente ligada à vida e à realidade social, e a cultura popular e a criação artística como formas de resistência e de transformação. Este entendimento da arte é particularmente relevante quando pensamos na construção de uma identidade colectiva no Portugal democrático. Rejeitando um uso essencialista e instrumental da música urbana, contribuiu activamente para a sua divulgação e reinvenção. Fê-lo sobretudo através da guitarra e da sua criação mas também através da partilha da sua reflexão (no Avante!, em O Diário, em encontros de trabalhadores e iniciativas do Partido) e mesmo em iniciativas como a construção do concerto «Escolas e Mestres que o Povo criou», na Festa do Avante! de 1977, sobre a qual escreveu: «Entre nós, na maior parte do País, empobrecido, o povo trabalhador, quando quer divertir-se, tem de inventar e construir, à custa da sua imaginação e dos seus braços, as diferentes formas de o fazer. Não há muito quem lhes queira preparar e exibir mesmo a troco do dinheiro que ele não possui. Daí que divertimento signifique, entre gente simples, associar a alegria ao trabalho, à criação, à inteligência, à experiência profissional, às vivas tradições populares. Isto basta para que a festa, no seu pleno sentido popular, seja como que um vastíssimo ponto de encontro dos trabalhadores com a cultura por eles próprios criada ou adoptada.»
Não significa, pois, que toda a arte tenha um potencial emancipador por si só, mas sim que a ligação ao real é inseparável do objecto artístico e que isso deve ser contemplado numa identidade colectiva em construção.
Comemorar Carlos Paredes
Ao longo das últimas décadas, e à semelhança do que sucede com outros artistas comunistas, Carlos Paredes tem sido canonizado como o génio a-social e a-político. Este gesto reduz o homem a uma figura fechada sobre si própria e sobre a sua guitarra; uma espécie de lugar-eremita ao qual a construção social do génio pelo capital relega os artistas comprometidos com o potencial transformador da arte.
Num segundo plano, esvazia a sua música de conteúdo, conteúdo esse que é determinante para a interpretarmos e para compreendermos o seu apelo. É à falsa dicotomia entre forma e conteúdo que a ideologia dominante recorre para esta despolitização da música de Paredes. Restringe a sua genialidade ao criativo uso da forma e à mestria do manejo da técnica, como se estas estivessem desligadas da dimensão material da vida que tanto as enforma.
Quando escutamos uma mudança abrupta de ritmo ou uma modulação inesperada em Paredes, somos levados a reagir a essa mudança, e nessa reacção encontramos tanto a forma como o conteúdo. Não é certo que a intenção de Paredes ao recorrer a secções rapsódicas seja desequilibrar uma expectável linearidade melódica e rítmica, ou que no Canto de Trabalho cada bloco represente uma realidade laboral diferente, mas a música concretiza-se na escuta, e uma música que emana do real requer uma escuta arriscada, capaz de reagir e pensar sobre os seus possíveis significados, não podendo ser relegada a um cânone esvaziado de conteúdo.
Mas também nas últimas décadas a obra de Paredes tem-se perpetuado através da interpretação e da criação artísticas, tanto através da guitarra portuguesa, como através dos mais variados instrumentos e abordagens musicais. Enraizada no tempo e circunstâncias onde foi criada, a sua música continua a dialogar com diferentes épocas, linguagens e géneros, e a animar o desenvolvimento artístico e cultural do nosso património musical comum, sendo um legado que se perpetua na dimensão material e colectiva da sua arte.
As comemorações do centenário de Carlos Paredes – que o PCP realiza sob o lema «O Povo e uma Guitarra» – vão ao encontro desse potencial transformador da arte e do legado de Paredes como parte integrante de um colectivo. O povo, que deu corpo à sua música e que nesta encontra expressão, sendo simultaneamente o destinatário da sua obra; e uma guitarra que materializa a resistência, a liberdade e a criatividade.