Um (in)completo conhecido
Quantas mortes serão necessárias até um homem saber que morreram pessoas demais?
Bob Dylan gravou «On the Road Again» em 1965, ano em que termina a trama do filme «Um Completo Desconhecido» (frase retirada do refrão de «Like a Rolling Stone»), de James Mangold, com Timothée Chalamet no protagonista, baseado no livro «Dylan Fica Eléctrico!», de Elijah Wald, que conta a história de Robert Allen Zimmerman (verdadeiro nome de Dylan) até o (agora) Prémio Nobel da Literatura (nomeado em 13 de Outubro de 2016) começar a utilizar instrumentos eléctricos nos arranjos e acompanhamentos das suas canções.
Isto quer dizer duas coisas: que uma enorme parte da obra de Bob Dylan ainda estava por fazer na data em que a história do filme termina e que o cantautor (folk, country, rock e por aí fora) confessou, como se tal fosse preciso, ter sido influenciado, nos conceitos de liberdade que perfilhou, por Jack Kerouac («On the Road», «Pela Estrada Fora» na tradução portuguesa do livro e «bíblia» da geração beatnick). Um exemplo desta assimilação do conceito «beatnick» de liberdade é a canção «Like a Rolling Stone» (porque as pedras rolantes não têm musgo, ou não se deixam «enferrujar»), símbolo da contra-cultura hippie.
Será bom referir aqui que, na transição do acústico para o «eléctrico», Dylan tocou com vários músicos, com especial incidência nos elementos dos Hawks, banda canadense que mais tarde se chamaria The Band (liderada pelo guitarrista Robbie Robertson) e que, anos depois, faria um filme com a assinatura de Scorsese, «A Última Valsa» («The Last Waltz»), que encerra com o autor de «I Shall Be Released» a interpretar essa canção. Era o início de «eléctrico» recordado numa sessão muito especial, com um desfile de nomes sonantes como Eric Clapton, Neil Young, Van Morrison, Emmylou Harris, Joni Mitchel, Muddy Waters, Neil Diamond e outros, retratado por um nome incontornável do cinema. Um documento comprovativo, anos depois, da reviravolta de que falava o autor do livro que deu origem a «Um Completo Desconhecido».
Muito boa gente escreveu sobre a atribuição do Nobel da Literatura a um fazedor de cantigas. Houve, até, quem se interrogasse sobre se não deveria o Nobel de Dylan ser da Paz e não de Literatura. Os académicos que concederam esse galardão a Bob Dylan justificaram a sua decisão pelo facto de o autor, compositor e intérprete ter «criado novas formas de expressão poética no quadro da tradição da música americana» e, por esse lado, fica o caso arrumado.
Porém, é inegável que Dylan cantou, e canta, e não pouco, a Paz. E não só em canções abertamente contra a guerra, como acontece no libelo acusatório que a canção «Hurricane» é (no caso uma condenação de um pugilista negro que depois foi revertida também por influência da cantiga – que, pelos vistos, é uma arma…). Ser contra o racismo e expressá-lo artisticamente e com eficácia é um bom exemplo de uma «guerra» comportamental e de princípios.
Mas «Blowing in the Wind» («soprando no vento») é uma denúncia da guerra… em tempos da guerra do Vietname. Nessa canção Bob Dylan escreve: «quantas vezes as balas de canhão devem voar / antes de serem banidas para sempre?»; ou: «quantos ouvidos um homem deve ter para ouvir o choro das pessoas e quantas mortes serão necessárias até um homem saber que morreram pessoas demais?»
Na senda de, por exemplo, Pete Seeger («Where Have All the Flowers Gone?»), Dylan criou hinos à Paz, bons de lembrar quando vemos o que se passa na Europa mais oriental ou no Médio Oriente. E com ele perguntamos que mais é preciso acontecer para afirmarmos, a sério, «make love, not war» (faz amor, não faças a guerra).
A resposta está soprando no vento. Esse mesmo vento que nos sacode tantas vezes e nós, distraídos, a não darmos por seus recados…
Nota: Nada do que atrás se escreveu tem, antes pelo contrário e a fiarmo-nos nas críticas, o intuito de afastar o público das salas onde o filme está a passar desde o dia 30 de Janeiro. Até porque nada mais se promete que o filme cumpra do que contar a história decorrente num tempo assinalado. Porém, bom será que se olhe para o resto da obra do «nobel das cantigas». Depois de 1965 Dylan gravou três dezenas de álbuns de estúdio, mais uns quantos ao vivo e muitos singles. Que o filme sirva, também, para nos abrir o apetite para (re)ouvirmos muitas e importantes canções do criador de «The Times They Are a-Changing».